sexta-feira, 30 de abril de 2010

O âmbito orgânico da jurisdição administrativa

O campo de actuação dos tribunais administrativos e fiscais encontra-se delimitado por disposições da C.R.P., E.T.A.F. e de legislação especial. Esta temática assume grande relevância dado que uma incorrecta aferição de qual seja a jurisdição competente pode conduzir a que o litígio em causa não possa, pelo menos de imediato, ser solucionado.

Segundo um critério orgânico pode referir-se que os tribunais administrativos são competentes para conhecerem de questões de direito administrativo para as quais lei prévia disponha ser competente a jurisdição administrativa. Uma correcta abordagem deste tema impõe que se atenda em primeira linha ao disposto na C.R.P. (mais concretamente ao artigo 213.3) de modo a aferir se nela se consagra uma reserva material absoluta de jurisdição que implique não apenas que só os tribunais administrativos podem julgar questões de direito administrativo bem como se a resolução de tais questões é um exclusivo dos tribunais administrativos.

Face à primeira interrogação apesar de inicialmente o Tribunal Constitucional propugnar o entendimento de que leis ordinárias que atribuíssem aos tribunais administrativos competência para aferirem questões não de direito administrativo a verdade é que grande parte da doutrina afirmava, mesmo antes do actual E.T.A.F., que os tribunais administrativos podiam julgar litígios emergentes de relações jurídicas não administrativas ( ex: actuação da Administração segundo normas de direito privado). O actual E.T.A.F. consagra tal concepção por exemplo nas alíneas e),g), e h) do nª1 do art. 4º.

Já no que diz respeito à segunda questão são de destacar dois distintos entendimentos na doutrina. Freitas do Amaral e Aroso de Almeida defendem que questões de d.administrativo que se conectem com d. fundamentais podem, dada a maior protecção processual conferida pelo C.P.C., ser julgadas por tribunais que não se insiram na jurisdição administrativa. Por seu turno Viera de Andrade advoga que apesar de o cerne da resolução de questões administrativas ser da competência dos próprios tribunais administrativos a verdade é que é viável que para tais questões sejam competentes tribunais não pertencentes à jurisdição administrativa (o que, de resto, não é vedado pelos art 211.1 C.R.P. nem pelo art 66 C.P.C.) sendo ainda relevante afirmar se se estiver perante uma questão de d. administrativo que não se encontre atribuída a qualquer jurisdição a competência para julgar será não dos tribunais judiciais mas sim dos tribunais administrativos ao quais, deste modo, se confere uma competência residual em sede de d. administrativo.

Conclui-se, pois, que o art. 212.3 C.R.P. não consagra uma tal reserva material absoluta devido aos argumentos antes apresentados e a verdade é que a própria C.R.P. acaba por inviabilizar tal realidade (ex: desde logo o art 223.2 CRP confere competência para julgar certas questões eleitorais ao próprio Tribunal Constitucional).

Em face de legislação ordinária papel central é atribuído ao E.T.A.F. que não apenas delimita os caso em que os tribunais administrativos são competentes (art 4.1) como expressa questões excluídas da jurisdição administrativa ( arts 4.2 e 4.3), fazendo-o sempre de modo meramente exemplificativo.
No que diz respeito ao E.T.A.F, cujo art 1º se limita a reafirmar o art 212.3 CRP, o seu art 4.1, que tem um carácter positivo, não apenas procura densificar o próprio art 212.3 C.R.P. bem como acaba por extravasar o que tal artigo define.

A maioria das alíneas do art 4.1 (são elas as alíneas a),c),d),f),i),j),l),m) e n) ) apenas explicitam o sentido do art 212.3 C.R.P. sendo de destacar nelas os seguintes aspectos:
4.1.a) Tribunais administrativos são competentes para acções destinadas à defesa de direitos fundamentais cuja violação decorra em sede de relações jurídicas de direito administrativo. De salientar que por esta via não apenas se evidencia o crescente subjectivismo do contencioso administrativo orientado a para a defesa de d. fundamentais dos particulares bem como se permite a tutela de direitos fundamentais de que a própria administração seja titular;

-4.1.c) A jurisdição administrativa julga lígios emergentes de actuações materialmente administrativas de órgãos que, por seu turno, não se inserem organicamente na Administração. Como exemplo destacam-se os actos materialmente administrativos praticados por tribunais judiciais ou os estatutos que regulam as relações entre a Assembleia da República e os seus deputados;

-4.1.d) Considera-se serem competentes os tribunais administrativos para aferir de litígios respeitantes à legalidade de normas e demais actos realizados por sujeitos privados, e já não somente por “pessoas colectivas de direito público” tal como refere o art. 4.1 b, quando tais entidades, mediante delegação, persigam interesses públicos através do exercício de uma actividade caracterizável como administrativa. Enquanto exemplos de tais entidades são, entre outras, as cooperativas, fundações de direito privado de criação pública, concessionários de obras e serviços públicos, federações desportivas ou instituições particulares de solidariedade social. Ainda quanto a tais entidades a sua sujeição à jurisdição administrativa é confirmada pelos art 37.3 e 51.2 C.P.T.A. que possibilitam a sua sujeição aos tribunais administrativos;

-4.1.f) Segundo esta alínea subsumem-se à jurisdição administrativa litígios referentes à interpretação, validade e execução de contratos administrativo tal como eles são definidos pela lei substantiva), visão esta que é defendida, entre outros, pelo autor Vieira de Andrade. Temos, pois que estão sujeitos à jurisdição administrativa:

- os contratos expressamente qualificados como administrativos pela lei; por lei deve aqui entender-se não só legislação diversa legislação avulsa ( ex: contratos de concessões de áreas de serviço a edificar na rede viária art 1º D.L. 173/93 e o contrato de urbanização art 45.1º D.L. 289/2000) bem como os contratos que se subsumam ao art 1.6 Cod. Contratos Públicos;

-“contratos de objecto passível de acto administrativo”; relevam os contratos cujo objectivo é a produção de efeitos jurídicos que, segundo a lei, apenas podem derivar da prática de um acto administrativo; esta realidade corresponde aos contratos administrativos de subordinação do direito alemão;

-“contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo”; inserem aqui os contratos nominados do art 178.2 C.P.A. bem como os contratos em que certos aspectos do seu regime sejam reguláveis por normas de direito público ( ex: contratos de arrendamento de imóveis pertencentes ao domínio privado do Estado que estão sujeitos a ordem administrativa de despejo caso seja necessária a sua utilização);

-“contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”; abrange os contratos que as partes, por sua vontade, tenham sujeitado a um regime de direito público podendo tal derivar de no, contrato em causa, se proceder, por exemplo, a uma remissão para o C.P.A. (ex art 180)ou se qualifique o contrato como sendo de d.administrativo, sendo que simplesmente pelo o facto de se dispor que tal contrato se subsume ao foro administrativo não basta para que tal se verifique;

-4.1.i) A jurisdição administrativa julga responsabilidade civil extracontratual decorrente de actos de entidades privadas praticados no exercício de poderes públicos mas não afere litígios em que tal responsabilidade derive de actos de mera gestão privada;

-4.1.j) São da competência dos tribunais administrativos os litígios de d. administrativo, e não aqueles que decorram de actos de direito privado, “entre pessoas colectivas de direito público” (ex: relações entre associações de municípios ou casos em que uma entidade de tutela possa fiscalizar a entidade tutelada dado o art 37.2 C.P.T.A. ou solicitar a ineficácia de actos por esta realizados) e “entre órgão públicos”( relevam aqui os litígios existentes entre órgãos da mesma pessoa colectiva, ou seja, as chamadas relações inter-orgânicas);

-4.1.l) Os tribunais administrativos dirimem litígios emergentes da necessidade de prevenção, cessação e reparação de bens constitucionalmente protegidos (sendo estes não apenas os presentes nesta alínea bem como os que constam do art 9.2 C.P.T.A. cuja enumeração é exemplificativa) e desde que a violação de tais bens protegidos for da autoria de entidades públicas e resulte quer de um acto de direito público quer de um acto de direito privado que não constitua crime;

-4.1.m) Tribunais administrativos aferem de questões de contencioso eleitoral para as quais não é competente o Tribunal Constitucional que, por exemplo, tem a seu cargo julgar litígios das eleições para a Assembleia da República, para a Presidência da República e para o Parlamento Europeu dado o art 8º da Lei do Tribunal Constitucional. Consequentemente, e a título exemplificativo, os tribunais administrativos são competentes para eleições realizadas em universidades ou institutos públicos;

-4.1.n) Os tribunais administrativo são competentes para executarem sentenças por si proferidas e sentenças emitidas por tribunais arbitrais constituídos nos termos da lei administrativa ( ex art 180 e ss C.P.T.A.) concluindo-se, consequentemente, que esta disposição concretiza o art 3º C.P.T.A. e respectivo princípio da auto-suficiência executiva dos tribunais administrativos cuja execução de sentenças não pertence assim aos tribunais judiciais;

Por seu turno as alíneas referentes a matérias como a responsabilidade civil (alíneas g) e h) ) e a contratação ( alíneas b),e) e f) ) acabam por proceder a um alargamento face ao que decorreria do art 212.3 C.R.P. destacando-se as seguintes especificidades:

-4.1.g) A jurisdição administrativa julga questões que, nos termos da lei (ou seja, da Lei 67/2007), levem ao surgimento de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público independentemente de o acto lesivo ser um acto de gestão privada ou de gestão pública. Paralelamente também a jurisdição administrativa conhece de acções intentadas para reparar danos emergentes do exercício da função legislativa e da função jurisdicional que, segundo a Lei 67/2007, originem responsabilidade civil extracontratual. Por exemplo os tribunais administrativos conhecem de acções de responsabilidade por actos ou omissões da função jurisdicional que invoquem, independentemente da jurisdição que cometeu tal falha, “erros de actividade” (ou seja, de organização) do funcionamento dos tribunais por estes violarem o direito à obtenção de uma decisão em prazo razoável dado o art 12 Lei 67/2007 ou por “erro judiciário” derivado de má interpretação de uma lei por parte de um tribunal administrativo (e nunca de um tribunal de outra jurisdição);

-4.1.h) Os tribunais administrativos têm legitimidade para julgarem a responsabilidade civil extracontratual de funcionários,de titulares de órgãos de pessoas colectivas de direito público e dos próprios órgãos (dada a alínea c)) independentemente do regime de prestação de trabalho (que pode ser por exemplo um contrato de trabalho de direito privado ou um contrato de trabalho em funções públicas) e do acto que está na génese do dano desde que este ocorra no exercício de funções públicas e por causa delas. Face a esta última parte da anterior afirmação destaca-se que a efectivação da responsabilidade depende do facto de o acto que lhe dá origem ocorra no exercício de funções pública (ou seja, releva aqui uma noção de conexão funcional que se prova mediante a demonstração de que o agente não estava a actuar no sou âmbito privado) e seja realizado por causa do exercício de tais funções públicas ( sendo que apenas neste caso haverá responsabilidade solidária do Estado com o titular do órgão dado o art 8.1 e 8.2 da Lei 67/2007. Conclui-se, pois, que se acto do agente que está na origem do surgimento da responsabilidade do agente for um acto pessoal então serão competentes os tribunais judiciais. É igualmente da competência dos tribunais administrativos as acções de responsabilidade civil extracontratual contra agentes que actuem no seio de pessoas colectivas públicas quando estas actuem com prerrogativas de poderes públicos ou segundo normas de direito público( tal consideração é viável desde logo devido ao disposto no art. 1.5 Lei 67/2007 que determina que tal lei se aplica agentes de direito privado que prossigam interesses públicos).

- 4.1.b) Segundo esta disposição, na sua 1ª parte (que acaba por apenas concretizar o sentido do art 212.3 C.R.P.), os tribunais administrativos podem fiscalizar a legalidade de normas (e, dado o art 4.1.d, regulamentos) e acto jurídicos (ex acto administrativos) emanados de pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de d. administrativo. É, todavia, na segunda parte desta alínea que se procede a um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa à face do que decorreria do art 212.3 C.R.P. uma vez que se considera serem os tribunais administrativos competentes para conhecer de invalidades presentes em quaisquer contratos, sejam eles de direito público ou de direito privado, que derivem da invalidade do acto administrativo que está na base da celebração de tal contrato ( ou seja, cujo procedimento público pré-contratual que precedeu à sua celebração seja invalido);

-4.1.e) A explicitação desta alinea é melhor compreensível se se proceder à seguinte divisão:

-Jurisdição administrativa é competente para julgar “questões relativas à validade de actos pré-contratuais” de “contratos”, quer sejam eles de direito público ou de direito privado,”a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidas, a um procedimento pré-contratual regulados por normas de direito público”; ou seja, existindo lei específica que preveja a possibilidade de sujeição a procedimentos pré- contratuais a normas de direito público, todos os litígios sobre a validade de tais actos pré-contratuais são da competência da jurisdição administrativa. E tal sucederá quer tal procedimento pré-contratual tenha existido ou não, a entidade que o pratica seja de direito público ou de direito privado e o contrato a que tal procedimento se oriente de direito público ou de direito privado. Esta alínea conecta-se em grande medida com a chamada Teoria da Invalidade Consequente segundo a qual se o procedimento existente antes do contrato estiver viciado na sua validade tal facto irá contaminar a própria validade do próprio contrato administrativo celebrado. A razão de ser desta alínea prende-se com a intenção de evitar que existindo por exemplo um contrato de direito privado com um procedimento pré-contratual público tal contrato se sujeite à jurisdição comum e esta depois não esteja legitimada a apreciar o procedimento pré-contratual que se orientou por normas de direito público. De salientar, finalmente, que o art 100.3 C.P.T.A. acaba por ainda vir a alargar o âmbito de jurisdição administrativa presente nesta alínea dado que a considera competente para julgar litégios emergentes de actos de entidades privadas que sejam realizados no âmbito de procedimentos pré-contratuais públicos;

-Jurisdição administrativa é competente para julgar “questões relativas à interpretação, validade e execução” de “contratos”, quer sejam eles de direito público ou de direito privado,”a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidas, a um procedimento pré-contratual regulados por normas de direito público”; face a esta parte da alínea aplica-se o raciocínio apresentado na 1ª parte unicamente se distinguindo ambas dado que esta se centra em “questões relativas à interpretação, validade e execução” de “contratos”;

Os art 4.2 e 4.3 E.T.A.F. são normas que, sempre de modo exemplificativo, retiram à jurisdição a competência para conhecer de certas questões.

Os casos enunciados no art 4.2 estão excluídos da jurisdição administrativa uma vez que, apesar de terem a natureza de direito público, a verdade é que não emergem de relações jurídico administrativas como determina o art 212.3 C.R.P. Destacam-se as seguintes particularidades:

-4.2.a) Face a actos praticados no exercício da função política os mesmos caracterizam-se por não serem susceptíveis de impugnação contenciosa mas apenas estão sujeitos ao controlo político feito pelos cidadão e órgão de soberania como a própria Assembleia da República. Já se tais actos originarem responsabilidade extracontratual do Estado inserem-se no art 4.1.g).Face à impugnação de actos praticados no exercício da função legislativa para ela não é competente a jurisdição administrativa sendo que tal efeito poderá antes ser através da intervenção do Tribunal Constitucional (art 281 C.R.P.) ou mediante a invocação pelos tribunais da inconstitucionalidade de modo a não aplicar actos legislativos (art 204 C.R.P. e 1.2 E.T.A.F.);

-4.2.b) Os tribunais administrativos não são competentes para impugnar decisões de tribunais que não se insiram na jurisidição administrativa e fiscal;

-4.2.c) Jurisdição administrativa não é competente para a impugnação de actos relativos ao processo penal uma vez que eles não são actos realizados ao abrigo de normas de direito administrativo;

Finalmente do art 4.3 E.T.A.F. determina que a jurisdição administrativa não é igual mente competente para aferir de certa matérias sendo de destacar as seguintes especificidades:

-4.3.a) Jurisdição administrativa não é competente para julgar acções de responsabilidade por erro judiciário ( ex: erro manifesto na aplicação do direito) cometido por tribunal inserido em jurisdição que não a adminstrativa;

-4.3.b) Tribunais administrativos não julgam actos materialmente administrativos realizados pela entidade descrita na alínea. De salientar que o art 24 E.T.A.F. sujeita à jurisdição administrativa os actos materialmente administrativos do Presidente do Tribunal Constitucional;

-4.3.c) Face a esta alínea aplica-se o que antes foi dito perante a alínea c);

-4.3.d) Desta alínea decorre que a os contratos de trabalho celebrados segundo normas de direito privado não estão sujeitas à jurisdição administrativa mesmo que uma das partes seja uma entidade de direito público enquanto que um contrato de trabalho celebrado com recurso ao Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas estará sujeito à jurisdição administrativa. Já se previamente à celebração de contrato de trabalho segundo regras de direito privado se recorrerem a procedimentos pré-contratuais de direito público será competente a jurisdição administrativa dado o art 4.1 e).
Bibliografia:

Amaral, Diogo Freitas do; Almeida, Mário Aroso de. Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.

Andrade, Vieira de. A Justiça Administrativa (Lições). 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2009.

Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira ; Código de Processo nos Tribunais Administrativos (vol. I) e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotado (Reim pressão),Almedina, 2006.

Inimpubgabilidade de actos/despachos interlocutórios no processo

Aqui deixo excertos de um acórdão interessante no qual o entendimento do TCA do Sul foi no sentido de não admitir o recurso de acto que não é ainda defitinitivo no processo.
À luz do que temos aprendido com o Professor Vasco Pereira da Silva, será esta uma decisão correcta?
Estamos devante um confronto entre um acto que não é ainda definitivo pois está ainda sob apreciação em juízo e a posição da recorrente que parece pretender que cesse desde logo a execução do procedimento do qual esse acto faz parte e pelo qual alega estar a ser lesada.

"3. Direito Aplicável

Como alega a recorrente, pelo despacho ora recorrido veio o tribunal “a quo” indeferir a requerida notificação do requerido para se abster de iniciar ou prosseguir a execução dos actos cuja execução foi requerida, estribando a respectiva decisão na doutrina do Ac. STA de 20 de Março de 2007, proferido no Proc.nº9191/06, de acordo com o qual não seria admissível a proibição de executar o acto administrativo no âmbito das providências relativas a procedimento de formação dos contratos.

A recorrente discorda deste Ac. do STA alegando que, ainda recentemente, foi proferido um Ac.TCA-Sul (de 25 de Novembro de 2009, no âmbito do recurso n.º0541/09, nos termos do qual o disposto no artigo 128º do CPTA é aplicável às providências relativas a procedimento de formação de contratos, como sucede, por exemplo no Ac.de 05.07.2007 de TCA-Sul, proferido no Proc. 02697/07.
(...)
Como alegam as contra-interessadas, o despacho recorrido não conheceu do mérito da providência, nem a decide, antes se limitando a indeferir o requerimento de proibição de iniciar ou de prosseguir a execução dos actos administrativos suspendendos por aplicação do artigo 128º do CPTA.

Neste contexto, afigura-se-nos óbvio que o despacho recorrido tem a natureza de um despacho interlocutório cujo recurso, por via de regra, só é admitido com o recuso que venha a ser interposto da decisão final.
Na verdade, como estatui o n.º5 do artigo 142º do CPTA, “ As decisões proferidas em despachos interlocutórios devem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, excepto nos casos de subida imediata previstos no Código Processo Civil”.

A nosso ver, no caso dos autos, a eventual aplicação da excepção prevista no segmento final do n.º5 do artigo 142º do CPTA, só poderia ter lugar se fosse possível demonstrar que a retenção do recurso do despacho interlocutório tornaria a sua apreciação pelo tribunal superior absolutamente inútil.
Como tal não sucede e não foi sequer alegado, não é possível concluir que a retenção do recurso o tornaria inútil (artº691º n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e 142º nº5 do CPTA), pelo que a interposição do recurso é inadmissível nesta fase processual."


Acórdão de 15/04/2010 do TCA do Sul

Cegos indemnizados!

Hospital Sta. Maria - Cegos receberam indemnizações


Decisão. Cinco dos doentes que perderam a visão em Santa Maria já têm o dinheiro. Walter Bom só recebe daqui a um mês

Cinco dos pacientes que ficaram cegos após uma operação no Hospital de Santa Maria receberam ontem as indemnizações. A excepção foi Walter Bom, que só deverá receber dentro de um mês por ter aceitado a proposta - a mais alta de todas - apenas na terça-feira. Os valores atribuídos variam entre os 26 mil e os 246 mil euros. "Vão ser entregues os cheques com os montantes indemnizatórios aos doentes que aceitaram os valores há um mês", avançou o presidente da comissão de acompanhamento, o juiz desembargador Eurico Reis.

Os valores foram revelados pe-la comissão arbitral aos doentes no passado dia 29 de Março. Eurico Reis explicou: "Apenas as questões burocráticas levaram a que os pagamentos não fossem feitos mais cedo." Walter Bom recebeu a maior indemnização de sempre por negligência no Serviço Nacional de Saúde e decidida fora do sistema judicial.

O acidente com os seis doentes ocorreu a 17 de Julho de 2009. A 25 de Agosto, o Hospital de Santa Maria criou a comissão de acompanhamento para avaliar os "eventuais danos e respectivo ressarcimento" das vítimas.

Para o hospital, "o número elevado de utentes lesados e os contornos do sucedido justificaram a atribuição de um carácter excepcional ao acompanhamento desta situação, através de um meio célere de mediação, inspirado no modelo da arbitragem voluntária". Os trabalhos da comissão duraram nove meses. "Todos nós preferiríamos que não tivesse havido a razão que originou esta questão", reconheceu o juiz.

in DN online

As notícias não desenvolvem em que que jurisdição teve lugar o processo, mas deduzo que tenha sido na jurisdição administrativa, com recurso à Lei 67/2009 relativa à Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Colectivas Públicas.
Tenho dúvidas relativamente a duas alíneas do 4º/1 ETAF, mas dependendo das especifidades do caso que a notícia não desenvolve, penso que seja ou a alínea g' (tratando-se de responsabilizar o Hospital em si) ou da alínea h' (se o caso se reconduzir à responsabilização dos profissionais de saúde em causa).

Um caso de confirmação da Justiça Administrativa...

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Ministério Público pede a “anulação e a nulidade” da prorrogação do contrato de concessão do terminal de contentores de Alcântara

A acção foi intentada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, tendo sido pedida a invalidação do aditamento ao contrato de concessão celebrado entre a Administração do Porto de Lisboa e a Liscont (grupo Mota-Engil), com base no facto de a prorrogação do contrato até 2042 ter sido realizada por ajuste directo, sem concurso público.

O Decreto-Lei que permitiu a realização do contrato e que introduziu alterações nas bases do contrato de concessão do direito de exploração do terminal portuário de Alcântara (DL 188/2008 de 23 de Setembro) foi suspenso por Lei da AR (Projecto de Lei 63/XI). No entanto, as obras de demolição de edifícios e de alteração da via férrea necessárias à execução do contrato prosseguem, de forma manifestamente ilegal.

Fontes: Expresso Online (19/04/2010); I Online (19/04/2010); Diário de Notícias (21/04/2010).

CASO PRÁTICO II, PG. 23 DE “O PROCESSO ADMINISTRATIVO EM ACÇÃO” – RESOLUÇÃO ALARGADA


1) Entidades privadas com poderes administrativos e jurisdição administrativa – o exemplo da Federação Portuguesa de Futebol (FPF);

2) Competência;

3) Legitimidade.


) Federação Portuguesa de Futebol e jurisdição administrativa

A FPF é uma associação de Direito Privado que até muito recentemente exerceu poderes públicos. Actualmente o seu estatuto de utilidade pública encontra-se suspenso desde 19 de Março, estando já em curso uma providência cautelar e uma acção de nulidade da decisão da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, da autoria de associações regionais e distritais de futebol. Perante o desenrolar da situação real e considerando o interesse académico em introduzir no caso prático a actuação de uma entidade privada no exercício de poderes públicos, ficcionar-se-á a manutenção do estatuto de utilidade pública. Este estatuto é atribuído a federações desportivas (1º, 2º e 10º DL 248-B/2008, 31/12, Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto [LBAFD]), mediante critérios e procedimento específicos (15º ss LBAFD), dotando-as de poderes de natureza pública no âmbito da regulamentação e disciplina das competições desportivas (10º e 11º LBAFD). Sobre a consideração da FPF como pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública, ver por exemplo o acórdão STA 074/02, de 15/12/2004.

Uma associação de Direito Privado com poderes públicos é uma entidade particular que integra a Administração Pública (AP) no sentido funcional pelo facto de: 1) exercer funções ou tarefas administrativas de uma forma que denuncia a apropriação pública das mesmas; e 2) estar especificamente regulada por normas de Direito Administrativo (DA). Este tipo de entidades deve distinguir-se das entidades administrativas privadas, organismos privados sob domínio público criados através de uma privatização orgânica formal e que pautam geralmente a sua actuação pelo chamado Direito Privado Administrativo (Direito Privado conformado por princípios constitucionais e legais de DA e por uma maior protecção dos direitos fundamentais), só excepcionalmente estando directamente sujeitas ao DA (nos casos em que actuem externamente, na qualidade de membros da Administração).

Sendo entidades privadas, só excepcionalmente se encontram sujeitas à jurisdição administrativa, por efeito do exercício de poderes públicos de autoridade (4º/1 d) ETAF), de cláusula geral delimitativa do âmbito da jurisdição administrativa (212º/3 CRP e 1º/1 ETAF) ou por disposições legislativas especiais. É através deste último critério que se submetem certos actos da FPF à jurisdição administrativa, uma vez que o 12º LBAFD permite que os actos de poder público praticados pelas federações desportivas dotadas de utilidade pública sejam objecto de recurso para os tribunais administrativos (sobre o recurso aos tribunais administrativos para a impugnação contenciosa de actos das federações desportivas vide, a título exemplificativo, os acórdãos STA 077733, 18/04/1991 e STA 0739/07, de 06/11/2007. De notar aqui que o facto de a FPF ser dotada do estatuto de utilidade pública não faz com que todos os actos dos seus órgãos sejam impugnáveis nos tribunais administrativos. Efectivamente, há que distinguir 3 esferas da acção federativa:

a) A esfera do Direito Privado – actuação da FPF no âmbito do Direito do Trabalho, do Direito das Obrigações, etc., como qualquer outra associação privada. A resolução de litígios é realizada nos tribunais judiciais.

b) A esfera do Direito Público – exercício de poderes de regulação pública, tal como entendidos pelo 10º e 11º LBAFD e 22º L. 30/2004, 21/07 – Lei de Bases do desporto (LBD). O exercício destes poderes da federação sobre os regulados (entidades referidas no 2º LBAFD e 3º/1 L. 112/99, 3/08 [Regime Disciplinar das Federações Desportivas]) processa-se de forma autoritária, surgindo os regulados como “administrados” face à federação. Donde, as decisões e deliberações das federações desportivas no âmbito do exercício de prerrogativas de autoridade concedidas pelo Estado são em regra justiciáveis nos tribunais administrativos (12º LBAFD e 47º/3 LBD).

c) A esfera desportiva – relativa à regulação técnica do jogo (ex: “a vitória vale 3 pontos”) e às regras disciplinares sancionatórias do desrespeito pelas “leis do jogo” (faltas). Não tem carácter jurídico, pelo que os tribunais estatais não são competentes para resolver litígios emergentes nesta esfera de acção das federações (47º/1 e /2 LBD). Sobre o conceito de “questão estritamente desportiva”, vide o acórdão STA 0120/08, de 10/07/2008.

No presente caso prático, a Comissão Disciplinar da FPF aplicou uma sanção de descida de divisão ao Clube F.C. Axadrezados. Caso real semelhante se passou com o Boavista, pelo que se irá aqui ficcionar que o motivo para a sanção foi o mesmo, ou seja, em resultado de processo judicial relativo a corrupção e tráfico de influências no futebol português (“Apito Dourado”). Este é claramente um acto fora do poder privado de auto-regulação da FPF, integrando a sanção um poder disciplinar que implica o uso de prerrogativas de autoridade no âmbito da punição de comportamentos que pervertem o fenómeno desportivo e são portanto contrários à ética desportiva (1º/1 e /2 RDFD e 47º/3 LBF). Donde, a decisão do órgão da FPF é impugnável nos tribunais administrativos (12º LBAFD e 47º/1 e /3 LBD).

Relativamente à impugnação da decisão pelos jogadores do clube, a competência dos tribunais administrativos verifica-se à luz do 4º/1 d) ETAF. Tratando-se de impugnação de um acto administrativo, a acção administrativa segue a forma especial, de acordo com o 46º/2 a) CPTA e nos trâmites do 50º ss CPTA. Sendo a FPF entidade privada em actuação ao abrigo de normas de DA, é ainda aplicável o 51º/2 in fine CPTA, que determina a impugnabilidade do acto em causa.

Já quanto à reacção judicial dos patrocinadores, que combina a impugnação do acto administrativo e o pedido indemnizatório (4º/1 d) e i) ETAF e 1º/5 L. 67/2007, 31/12 [Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas]), está-se perante uma cumulação de pedidos (4º/1 a), /2 a) e f) e 47º/1 CPTA). Separadamente, o pedido de impugnação do acto seguiria a acção administrativa especial (46º/2 a), 50º ss e 51º/2 CPTA), enquanto o pedido de indemnização seguiria a acção comum (37º/2 f) CPTA). Todavia, tratando-se de uma cumulação de pedidos correspondentes a formas de processo diferentes, o processo segue a forma especial (5º/1 e 47º/1 CPTA).


1) Competência

Em razão da matéria, não cabendo no processo no âmbito da competência reservada do Supremo Tribunal Administrativo (24º/1 ETAF) nem dos Tribunais Centrais Administrativos (37º ETAF), o julgamento da causa pertence aos Tribunais Administrativos de Círculo (TAC’s), que possuem competência residual (44º/1 CPTA).

Em razão do território, a competência para a acção intentada pelos jogadores é aferida pela regra geral do 16º CPTA, uma vez que a causa não se integra em nenhuma das excepções dos arts 17º a 21º CPTA. Para a acção intentada pelos patrocinadores, a norma a aplicar é a constante do 18º/2 CPTA, uma vez que a indemnização é requerida na sequência da impugnação de um acto administrativo emitido por um órgão da FPF; o 18º/2 CPTA remete-nos para o tribunal da residência habitual da maioria dos autores, uma vez que o tribunal competente para apreciar a validade da emissão do acto administrativo é aferido com base no 16º CPTA. Não apresentando o caso prático dados suficientes para a completa resolução da questão da territorialidade, resta mencionar que a determinação do TAC concretamente competente se realiza recorrendo ao DL 325/2003, 29/12, alterado pelo DL 182/2007, 9/05.

2) Legitimidade

a) Segundo a regra geral da legitimidade passiva (9º/1 CPTA), podem intentar uma acção administrativa as entidades implicadas na relação material controvertida, ou seja, na relação jurídico-administrativa (212º/3 CRP e 1º/1 ETAF). Da aplicação exclusiva da norma em questão resultaria que apenas o próprio clube de futebol teria legitimidade processual no âmbito do contencioso administrativo. Contudo, uma vez que a acção segue a forma especial, há que ter em consideração o regime específico de legitimidade para a impugnação de actos administrativos (55º CPTA), que repete parcialmente o 9º CPTA, mas alarga consideravelmente o leque de pessoas que podem recorrer aos tribunais administrativos, no âmbito desta matéria. Sobre a impugnação de deliberações de órgãos da FPF pelos clubes de futebol, sugere-se a leitura do acórdão STA 0005488, de 05/12/1989.

Os jogadores do clube, enquanto particulares, não têm de ser titulares de um direito subjectivo (e não o são) para impugnar o acto, bastando que tenham um interesse directo e pessoal na invalidação do mesmo (55º/1 a) CPTA). De notar que o interesse directo se reconduz aqui à noção de interesse processual (ou seja, ao interesse em obter a tutela jurisdicional requerida através do meio processual escolhido, de acordo com a definição de Teixeira de Sousa), enquanto o interesse pessoal é referente à legitimidade proprio sensu (titularidade do interesse em nome do qual é impugnado o acto). Tendo em conta que a descida de divisão pode levar à perda de contratos publicitários, ao menor interesse dos adeptos no clube e até à redução dos salários dos jogadores (14º/2 L. 28/98, 26/06 – Contrato de trabalho desportivo), o interesse destes é não serem ilegalmente prejudicados pelo acto lesivo passível de afectar a posição jurídica de vantagem que mantêm pela permanência na 1ª Liga. Por aqui se constata a amplíssima legitimidade consagrada pelo 55º/1 a) CPTA, permitindo que sejam parte na acção administrativa não só os titulares de direitos subjectivos no sentido clássico do termo, mas também os titulares de interesses legítimos ou difusos a quem a invalidação judicial do acto traga uma vantagem imediata e própria.

No que aos patrocinadores diz respeito, é também invocável o 55º/1 a) CPTA para aferição da sua legitimidade activa. Em moldes semelhantes, estão directa e pessoalmente interessados em não serem ilegalmente prejudicados pelo acto; neste caso, a descida de divisão pode implicar para o patrocinador a necessidade de rescisão dos contratos de patrocínio, ou afectar a sua imagem junto do mercado publicitário.

b) Relativamente ao Ministério Público (MP), este pode impugnar o acto praticado pela Comissão Disciplinar enquanto titular da acção pública (55º/1 b) CPTA e 51º ETAF), intervindo no processo como parte principal. Não parece que a legitimidade do MP se deva aferir por via do 55º/1 f) CPTA, uma vez que está já contemplada no 55º/1 b) em extensão ilimitada para a matéria de impugnação de actos administrativos; a admissão da aferição da legitimidade do MP por via do 55º/1 f) CPTA implicaria a limitação da mesma aos interesses comunitários referidos no 9º/2 CPTA, em virtude da remissão legal e, portanto, uma duplicação da regra de legitimidade sem qualquer vantagem. O MP pode ainda intervir como parte acessória especial (334º CPC) enquanto amicus curiae, entidade imparcial defensora de direitos fundamentais, bens constitucionalmente protegidos e interesses públicos ou comunitários relevantes. A opção por um ou outro tipo de intervenção é uma questão de estratégia processual, sendo que se optar pela via da parte acessória os seus poderes processuais serão mais limitados e a sua posição processual subordinada à da parte principal da demanda.

c) Claque

A legitimidade processual da claque é analisada no quadro do 55º/1 f) CPTA, relativo à acção popular. Esta não implica (ou não implica principalmente) um interesse pessoal na invalidação do acto, mas sim um interesse de toda a comunidade ou de um grupo indeterminado de cidadãos (logo, difuso) relativamente a um bem jurídico de fruição difusa (total ou maioritariamente).

No caso é invocado o interesse público da verdade desportiva. Ora este não pode considerar-se integrante do direito fundamental ao desporto (79ºCRP), não sendo portanto um bem constitucionalmente protegido. Efectivamente, o direito ao desporto implica que os particulares possam exigir ao Estado certas incumbências, como a promoção, o estímulo e o apoio da cultura física e do desporto, mas já não a defesa de uma suposta verdade desportiva, conceito aliás indeterminado e de concretização complexa. Como bem nota Jorge Miranda, o direito ao desporto é corolário do direito à protecção da saúde (64º/2 b) CRP) e do direito aos lazeres (59º/1 d) e 70º/1 e) CRP), de onde se infere que a ratio da constitucionalização do primeiro não se relaciona com quaisquer garantias de contestação procedimental ou processual da veracidade ou da justiça da aplicação de concretas sanções no quadro desportivo. A hipótese de consideração do interesse público da verdade desportiva do prisma do futebol como desporto de massas merecedor de protecção enquanto património cultural português (73º/1 CRP) não é inteiramente descartada.


Bibliografia:

Almeida, Mário Aroso de. O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2005.

Amaral, Diogo Freitas do; Almeida, Mário Aroso de. Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004.

Andrade, Vieira de. A Justiça Administrativa (Lições). 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2009.

Cadilha, Carlos Alberto Fernandes. Legitimidade Processual. In “Cadernos de Justiça Administrativa”, nº 34, Julho/Agosto, 2002. pp. 9-23.

Gonçalves, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Administrativos. In “Cadernos de Justiça Administrativa”, nº 56, Julho/Agosto, 2006. pp. 50-59.

______________ A «Soberania Limitada» das Federações Desportivas. In “Cadernos de Justiça Administrativa”, nº 59, Setembro/Outubro, 2006. pp. 41-61.

Miranda, Jorge. Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. Anotação aos arts. 73º e 79º.

Silva, Vasco Pereira da. O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2009.

Sousa, Miguel Teixeira de. Reflexões sobre a Legitimidade das Partes em Processo Civil. In: “Cadernos de Direito Privado”. Nº1 Janeiro/Março 2003. pp. 3-13.





Legitimidade processual:Algumas notas...

Como salienta o Professor Vasco.P.Silva, “a legitimidade constitui um elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais.”

Sendo um conceito de teoria geral do direito, a legitimidade tem sido utilizada tanto no direito material como no direito processual, sendo por isso costume distinguir e relacionar uma legitimidade material e uma legitimidade processual.

Grosso modo, parece possível afirmar que a legitimidade corresponde a uma certa posição de um sujeito face ao objecto de um acto que é exigida pelo direito para a sua prática, entendido o objecto do acto como a concreta situação jurídica sobre a qual incidirá ou que resultara da sua actuação. Essa actuação sobre uma situação jurídica pode traduzir-se em diversas formas, maxime, disposição, constituição(originaria ou derivada), seja de uma situação activa(acto de aquisição) seja de uma situação passiva(acto de vinculação), extinção de uma situação activa ou passiva(acto liberativo).

Tradicionalmente, aponta-se como questão operatória subjacente ao conceito de legitimidade a susceptibilidade de dispor de certa e determinada posição jurídica. Assim, in concreto, pergunta-se: pode o sujeito dispor de certa posição jurídica?

Ora, sindicando o problema do campo material e trazendo-o para o campo processual, a verdade é que também aqui ele se faz sentir. Quem pode ser parte numa dada e concreta causa? Ou de forma mais concisa, quem pode processualmente dispor, através da pratica dos respectivos actos e da sujeição a uma sentença, de determinada posição jurídica?

Uma vez ultrapassada a concepção clássica (que configurava a legitimidade em função do interesse dos particulares no afastamento do acto administrativo, interesse esse que teria de ser: pessoal, directo e legítimo) o novo contencioso administrativo incorporou um principio geral de legitimidade, maxime, de aferição da legitimidade, basilarmente assente na alegação da posição de parte da relação material controvertida (artigo 9º do CPTA).Nesta senda, a legitimidade afere-se hoje em função da posição dos sujeitos e da alegação de direitos e deveres recíprocos na relação substantiva.

Destarte, sem prejuízo da aparente facilidade do critério, a verdade é que, como passaremos a demonstrar, este (em especial por força da necessidade da sua conjugação com outros preceitos, designadamente, art.55/1 CPTA)) não se encontra isento de dificuldades dogmáticas e divergências doutrinárias, as quais incidem não só sobre a extensão/delimitação dos conceitos ínsitos na sua aplicação, mas também sobre a necessidade da sua articulação com outros preceitos também eles respeitantes á legitimidade processual.

Com efeito, para além do princípio geral consubstanciado no artigo supramencionado, a matéria da legitimidade também se encontra prevista nos artigos:40º, respeitante à legitimidade em acções relativas a contratos e 55º, 68º, 73º e 77º, referente às pretensões que se pretendem fazer valer por via de acção administrativa especial.

Diz-nos o artº9/1 que “Sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no artigo 40.º e ano âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste Código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”.

Da leitura do preceito, de resto análogo ao art.26/3 CPC, parece de concluir por uma situação de situação de ilegitimidade, sempre que o autor não seja titular da relação material controvertida por ele alegada. Efectivamente, não pode ter legitimidade para propôr uma acção ou ser nela demandado quem materialmente não pode dispôr da situação que será objecto dos efeitos da decisão final, é a chamada legitimidade processual directa.

Assim, ao contrário do art.º 55/1 CPTA, que exige para efeitos de propositura da acção administrativa especial, a titularidade de um interesse pessoal e directo (vide, infra), o art 9º parece bastar-se para efeitos de legitimidade na acção administrativa comum, com a mera alegação de titularidade da relação material objecto do litígio (sendo que essa titularidade é aferida em função do que o autor alega). Ora, tendo em consideração que é o autor quem define na petição inicial a própria relação cuja titularidade vai alegar, a excepção de ilegitimidade só procederá quando (sem prejuizo da questão do interesse processual), nomeadamente, houver divergência entre quem o autor identifica como devedor da pretensão e quem ele demanda na petição ( relação existe, mas não está processual e subjectivamente configurada de acordo com a realidade que porventura lhe serviria de base)

Nesta eventualidade, adiantamos desde já, rara, estaremos perante uma excepção dilatória , que poderá ser alegada pelo réu na contestação(art.487/2 CPC ex vi art.1ºCPTA;art.89/1/d CPTA),ou conhecida oficiosamente pelo tribunal(em regra no despacho saneador 87º CPTA).Deverá então juiz providenciar pelo suprimento do vicio, convidando as partes para tal, em prazo por si fixado(art.88/2 CPTA). Ora nesta senda, parece de concluir que o artº9 implica, quanto aos demais casos, consequências no momento do conhecimento do mérito da causa, pois que se antes ( tal como na anterior redacção do actual art. 26/3 do CPC) o juiz podia logo no saneador absolver o réu da instancia por ilegitimidade e terminar a instância , agora de duas uma: ou pode conhecer logo do mérito da causa e profere sentença (artº87/1/b CPTA), ou continuará a acção nos seus termos.
Assim, parece possível afirmar, que haverá maior possibilidade de produção antecipada da decisão de mérito, pois as situações que fundamentavam decisão de forma no despacho saneador fundamentam, agora, decisão de fundo.

Ora, em jeito de conclusão, resta saber porque redundante e inútil em face da função própria da procedência da acção, fará sentido, de iure condendo, a existência de legitimidade enquanto pressuposto processual especifico(salvo nos casos de legitimidade indirecta em que não há identidade entre titularidade /legitimidade material).Neste sentido parece também apontar o princípio da prevalência das decisões de mérito sobre as de forma (art. 7º CPTA).



Posto, isto importa agora debruçarmo-nos sobre o sentido a dar á expressão “interesse pessoal e directo” utilizada pelo artº55 CPTA.

Segundo a douta posição do Professor Vasco.P.Silva o que está em causa no artigo 55º/1 a) do CPTA, é o exercício do direito de acção por privados que defendem os seus interesses próprios, mediante a alegação de uma “titularidade de posições subjectivas de vantagem” em face da Administração Pública.O “interesse pessoal e directo” corresponde assim a um direito subjectivo entendido em sentido amplo, rejeitando-se a tripartida distinção tradicional entre: direitos subjectivos stricto sensu, interesses legítimos e interesses difusos. Assim ao referir-se a “interesses directos e pessoais” o artº55 CPTA pretende tão só significar que gozam da acção para defesa de interesses próprios, todos os indivíduos que demonstrem ser titulares de uma posição jurídica de vantagem, ou sejam parte na relação material controvertida. Isto, porque e na medida em que o carácter pessoal e legítimo do interesse é uma decorrência lógica do direito subjectivo que o particular faz valer no processo.O interesse é pessoal, porque o particular alega a titularidade de um direito que foi lesado por uma conduta ilegal da Administração e é legítimo na medida em que esse direito lhe foi conferido pelo ordenamento, através da intermediação de uma norma atributiva de um direito ou através da imposição em seu benefício, de um dever à Administração.

Um tanto ou quanto diversa é a posição dos ilustres Professores Vieira de Andrade e Aroso de Almeida, para quem “acção particular” prevista no artigo 55º/1 a) do CPTA, pode ser intentada por quem alegue ser titular de um potencial benefício, isto é, quem retirar imediatamente da anulação ou declaração de nulidade um qualquer benefício específico para a sua esfera jurídica.Para afirmar a legitimidade basta a titularidade de um interesse de facto para que o particular possa intentar a acção pretendida não se exigindo sequer que aquele seja um interesse legalmente protegido.Consequentemente, é titular de um “interesse directo” quem retire de forma imediata um qualquer benefício da acção e, é titular de um “interesse pessoal” quem retire esse benefício para a sua esfera jurídica mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada, podendo, como salienta Aroso de Almeida, esse beneficio traduzir-se tão só num afastamento de efeitos que no momento da impugnação se revelem efectiva ou potencialmente desfavoráveis.

Ora do confronto entre as posições, facilmente se conclui pelo carácter mais abrangente desta última. Destarte, se é certo que os interesses ínsitos no preceito não parecem passíveis de configurar-se como interesses meramente eventuais, hipotéticos, mediatos ou remotos, a verdade é que parece ter sido intenção do legislador proceder, porventura motivado pelo principio da plenitude da tutela jurisdicional (artº.268/4 CRP), ao alargamento das situações passíveis de conferir legitimidade processual activa. Contudo, qualquer que seja a posição que se queira, in concreto, perfilhar, a verdade é que independentemente da atribuição de legitimidade processual, a dignidade, a conveniência e a necessidade de tutela do “interesse” ou “direito subjectivo” será sempre tida em conta na apreciação do mérito da causa, maxime, na decisão de procedência ou improcedência da acção. Posto isto, cabe perguntar se o risco de multiplicação de processos não será a contrapartida, porventura necessária, de um alargamento da tutela jurisdicional efectiva a um leque mais vasto de situações.

Por último, parece-me ainda de salientar um aspecto respeitante á legitimidade passiva, que pelo desvio que implica relativamente ás nossas conhecidas regras de processo civil, se afigura como particularmente interessante.
Ora, quanto às regras conformadoras do pressuposto processual da legitimidade passiva em contencioso administrativo rege o art. 10º CPTA,
a regra geral está no nº1 :
"Cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor."
Chama-se a atenção para o nº4 :"O disposto nos dois números anteriores não obsta a que se considere regularmente proposta a acção quando na petição tenha sido indicado como parte demandada o órgão que praticou o acto impugnado ou perante o qual tinha sido formulada a pretensão do interessado"

Em termos de tramitação processual, saliente-se o disposto no art. 88º /2 CPTA: mesmo que o Juiz julgue procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva invocada pela Ré, tal não implicará, ao invés do que sucede no processo civil, a absolvição da instância.
Em contencioso administrativo, o Juiz proferirá despacho de aperfeiçoamento para, no prazo de 10 dias, a parte suprir a falta do pressuposto processual, neste caso, demandando a parte legítima.
Isto resulta também do princípio da prevalência das decisões de mérito sobre as de forma (art. 7º CPTA)
vide o Ac. TCA Sul de 8/5/2008, no qual se prescreve que :

· "A excepção da ilegitimidade passiva singular no contencioso administrativo é uma excepção suprível - artigo 89º, nºs 1 e 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos"
· "A decisão de absolvição da instância que pressupõe não ser suprível a excepção dilatória, não é compatível com a decisão de convite ao aperfeiçoamento que pressupõe exactamente o contrário, ser suprível a excepção dilatória"
· "Tendo sido demandado numa acção sobre responsabilidade o Ministério em vez do Estado, tendo em conta o princípio da prevalência das decisões de fundo sobre as decisões de forma, não deve ter lugar a absolvição da instância mas antes deve o autor ser convidado a suprir a excepção de ilegitimidade passiva que se verifica neste caso - artigos 7º, 11º, nº 2, e 88º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos"

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Observatório da realidade

Supremo Tribunal Administrativo afirma validade do processo eleitoral do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas

Em Janeiro do presente ano o Supremo Tribunal Administrativo decidiu que o procedimento que conduziu à eleição de cinco membros do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas em Outubro de 2008 foi válido. Este desfecho do presente processo contraria a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo de Lisboa que, em Abril de 2009, atendeu ao pedido de impugnação deste acto eleitoral apresentado pelo conselheiro Eduardo Dias que invocou que a regularidade do processo eleitoral dependia da prévia aprovação do Regulamento do Conselho das Comunidades Portuguesas sobre tal eleição. De tal decisão recorreu o Ministério dos Negócios Estrangeiros sendo que, em Agosto de 2009 ,o Tribunal Central Administrativo – Sul pronunciou-se pela validade do acto eleitoral e ,em Janeiro de 2010, o Supremo Tribunal Administrativo confirmou tal orientação colocando um ponto final em todo o processo.

http://www.mundoportugues.org/content/1/6714/ccp-eleicoes-para-conselho-permanente-sao-validas

http://aeiou.expresso.pt/conselho-das-comunidades-supremo-tribunal-administrativo-considera-que-eleicoes-foram-validas=f571218

http://tv1.rtp.pt/noticias/index.php?t=Supremo-Tribunal-Administrativo-considera-que-eleicoes-foram-validas.rtp&article=328208&visual=3&layout=10&tm=8

Supremo Tribunal Administrativo considera inválidos argumentos para anular sistema multimunicipal de água e saneamento.

Em Fevereiro de 2010 o Supremo Tribunal Administrativo indeferiu a pretensão apresentada pela Câmara Municipal do Fundão de anular a instituição de uma empresa criada no ano 2000 para gerir a distribuição de água e serviços de saneamento inicialmente em dez municípios. No presente processo o autor alegava que o acto de constituição da referida empresa padecia de vícios com origem na própria Câmara Municipal do Fundão ”que apenas aderiu parcialmente ao sistema, em algumas freguesias e na actividade de saneamento” . A decisão do S.T.A. fundamentou-se no facto de não ser admissível à referida autarquia venha «agora, decorridos nove anos sobre a data da respectiva constituição, questionar a validade de um sistema multimunicipal a que aderiu e cujos contornos aceitou desde o momento inicial» bem como no facto de considerar que “não cabe ao Município do Fundão invocar, em defesa da sua pretensão, a existência de hipotéticos vícios que digam respeito ao processo decisório de quaisquer outros municípios”.

http://www.novaguarda.pt/noticia.asp?idEdicao=223&id=16024&idSeccao=3226&Action=noticia

http://www.ointerior.pt/noticia.asp?idEdicao=539&id=26446&idSeccao=6444&Action=noticia

Tarefa 1, “a mais velhinha”, de comparação de sistema francês e britânico de Justiça Administrativa – “Governo dos Juízes”

Em jeito de realização da primeira tarefa proposta neste blogue, quando o mesmo ainda não se encontrava em pleno funcionamento, vimos agora, talvez tarde, talvez a tempo, versar sobre a caracterização comparada dos modelos francês e britânico de Justiça Administrativa.
Pelo nosso interesse e “quase amor” pela função jurisdicional, vamos tratar esta comparação de modelos versando sobre os Tribunais, tendo sempre presente que é a análise comparativa e a própria evolução histórica que pretendemos enfatizar.

Mário Nigro, em 1980 usa a expressão “
juiz de trazer por casa” para explicar o primeiro trauma da evolução histórica do contencioso administrativo, já que se atribuía aos órgãos da Administração a tarefa de se julgarem a si próprios. Caso se desse a possibilidade a um Tribunal Comum de “perturbar a actuação dos corpos da Administração”, estar-se-ia a conceder-lhe a função administrativa, estar-se-ia a dar-lhe a possibilidade de administrar!
Este sistema de administrador-juiz, ou chamado “pecado original” do Contencioso Administrativo, baseava-se no tão conhecido e tão mal interpretado Princípio de Separação de Poderes, do ilustre Montesquieu. Dizia no seu “
De L’Esprit des Lois” que o poder judicial “é o poder através do qual o Estado julga e pune os particulares pelos seus diferendos”. Logo, segundo a lógica da separação de poderes, nunca poderia um tribunal julgar a Administração, porque estava fora do “verdadeiro” poder judicial. Para mais, os juízes seriam apenas, a partir da Revolução Francesa, bocas que pronunciavam as palavras da lei. Entidades desprovidas de poder, os juízes eram invisíveis ou nulos uma vez que não estavam ligadas a nenhum Estado.

Urge ser questionado o seguinte: Parece justa esta afirmação do ilustre Barão de Montesquieu, quando durante todo o Antigo Regime foram os juízes que lutaram contra a concentração do poder real (com os seus “vetos” e censuras às decisões régias) ?
Parece que justa não será, mas o medo dos revolucionários encontrou nestas palavras alento para comprimir o poder dos juízes.
O medo nunca é justo e muito menos racional.
Os revolucionários, receando o “
gouvernement des juges” (governo dos juízes), ditam no Preâmbulo da Legislação de 1789: “a Nação não esqueceu o que se deve aos Parlamentos; só eles resistiram à tirania (...) mas esta forma de magistratura não é já mais necessária...”.

Temos aqui substância para analisar comparativamente França e Inglaterra (referimos os países e não os sistemas francês e britânico para, ao estilo alegórico, se personificarem as partes):

1) Não deixa de ser caricato como uma só teoria da separação de poderes tem interpretações tão diferentes consoante os teóricos do Direito que a problematização e aplicam. Em França, os litígios administrativos são proibidos aos tribunais comuns. A ideia de Estado “todo-poderoso” esconde-se atrás da Administração e do seu contencioso especial. Em Inglaterra, a Administração submetia-se aos tribunais e regras de direito comum, estando até o Rei impedido de resolver “questões contenciosas” ou ordenar os juízes, numa verdadeira ideia de separação de poderes (Act of Settlement 1701).
2) A preocupação subjectivista em 1689 do Bill of Rights concede direitos, liberdades e garantias a todos os englishmen, sem excepção, ou seja, afirmava-se um “rule of law” para todos. E em França, será que Agnès Blanco também logrou desta visão subjectivista? Não. Nessa altura a Administração executiva não via o particular como sujeito jurídico, mas como mero objecto do poder político. Só os direito subjectivos públicos eram invocáveis pelo indivíduo contra o Estado.
3) Centralização napoleónica contrapõem-se à descentralização da central government e local government.
4) Sistema de administração judiciária vs sistema de administração executiva.

Podíamos continuar a elencar e cruzar informações francesas e inglesas, porque os sistemas são clara e indiscutivelmente diferentes, mas para isso remetemos para DICEY e HAURIOU, os quais, cada um com o seu nacionalismo, o farão mais acertadamente.

Chegada à parte das ilações - parece então que o sistema inglês é o “mais simpático”, sendo aquele para onde nos leva a razão. Perguntam-nos então: Porque é que Portugal se deixou influenciar pelo “malvado” sistema francês?
A resposta surge uns anos mais tarde quando, já no século XX, a Inglaterra se depara com a realidade dos tribunais administrativos –
tribunals em oposição aos courts –aqueles julgando com regras processuais diferentes caso o litigio fosse administrativo. Apesar desta jurisdição única parecer estar dividida, não se chega sequer a uma confusão entre administração e justiça, porque a última palavra, em termos de legalidade, cabe sempre aos tribunais comuns.
A justificação para a escolha do sistema francês tem naturalmente a ver com o facto de Portugal pertencer à família “jurídico-continental”, marcado pelo poder da Constituição e da Administração, ao contrário do sistema
common law.

Cabe-nos agora concluir esta tarefa, deixando várias interrogações:

- Será que a criação dos Tribunais Administrativos faz/fez sentido?
- Será que todos os litígios poderiam (nomeadamente aqueles em que a administração é parte) integrar a competência dos Tribunais Comuns?
- Será que o futuro do Contencioso Administrativo poderá inspirar-se noutros sistemas jurídicos, (o sistema oriental), para procurar novas soluções?

O nosso objectivo não é o de propor um sistema de
common law para Portugal, mas sim algo mais profundo e psicanalista: feita a análise do modelo francês, o qual influenciou a nossa Justiça Administrativa, saber se este pode evoluir para um ainda menor intervencionismo estatal e crescente poder jurisdicional único.
Os mais receosos dirão: Mas os tribunais funcionam mal? E se a jurisdição comum e a jurisdição administrativa fossem uma só?

Conclusões para depois, deixamos aqui aberto o debate.

Recurso Hierárquico Desnecessário Necessário

A grande questão que se coloca é a de saber se a impugnação contenciosa de actos administrativos se encontra dependente ou não, da prévia utilização, pelo impugnante, de vias de impugnação administrativas e, em particular, da interposição de recurso hierárquico necessário.
A distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo tinha única e exclusivamente que ver com a questão de saber se o acto administrativo era ou não susceptível de recurso contencioso, artigo 167º/1 do CPA.

Desta forma, a necessidade do recurso hierárquico apenas dizia respeito à impugnabilidade contenciosa, constituindo um mero pressuposto processual.
O acto administrativo praticado pelo subalterno era idêntico ao praticado pelo superior hierárquico, produzindo os mesmos efeitos jurídicos, pelo que a necessidade da intervenção do órgão de topo da hierarquia só se verificaria se o particular pretendesse contestá-lo judicialmente.

Actualmente, o CPTA não exige que os actos administrativos sejam objecto de prévia impugnação administrativa, para que possam ser objecto de impugnação contenciosa.
Decorre dos artigos 51º e 59º/4 e 5 do CPTA ,que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa:

-Artigo 51º/1 do CPTA: Consagração da impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, ou que seja dotado de eficácia externa.
Ao não existir qualquer referência à necessidade de prévia interposição de uma garantia administrativa para o uso de meios contenciosos, ela deve ser considerada afastada pela legislação contenciosa, bem como relativamente a qualquer lei avulsa que consagre a obrigatoriedade de recurso hierárquico.

- Artigo 59º/4 do CPTA: Atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas.
Tem como objectivo, conferir uma maior eficácia à utilização de garantias administrativas, dado que o particular, que decida optar previamente por essa via, sabe agora que o prazo para a impugnação contenciosa só voltará a correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação do acto administrativo.
Da perspectiva do particular, passa a poder valer a pena solicitar previamente uma segunda opinião por parte da Administração, não vendo precludido o seu direito de impugnação contenciosa pelo decurso do prazo, restando esperar que, do lado da Administração, as garantias administrativas sejam efectivamente consideradas como uma oportunidade de proceder à reapreciação da questão e aproveitadas para satisfazer as pretensões dos privados. Só assim as garantias administrativas podem funcionar como verdadeiros instrumentos de protecção subjectiva e de tutela objectiva da legalidade e do interesse público, adquirindo uma função de composição preventiva de litígios contenciosos.
Desta forma, o recurso hierárquico passou a ser sempre desnecessário mas também útil.

- Artigo 59º/5 do CPTA: Estabelecimento da regra segundo a qual, mesmo que o particular utilize previamente uma garantia administrativa e beneficie da consequente suspensão do prazo de impugnação contenciosa, não impede a possibilidade de imediata impugnação contenciosa do acto administrativo.
Encontra-se aqui patente o afastamento inequívoco da necessidade de recurso hierárquico, pois é sempre possível ao particular aceder de imediato à via contenciosa independentemente de ter ou não ter feito uso da via graciosa.

Na opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, a exigência do prévio esgotamento das garantias administrativas como condição necessária de acesso aos tribunais constituía, uma das manifestações dos “traumas de infância” do Contencioso Administrativo, enquanto resquício dos tempos do administrador-juiz.
O Professor sempre defendeu a inconstitucionalidade da regra do recurso hierárquico necessário, com base nos seguintes argumentos:

- Princípio da Plenitude da tutela dos direitos dos particulares, artigo 268º/4 da CRP, pois a inadmissibilidade de recurso contencioso, quando não tenha existido previamente o recurso hierárquico necessário, equivale a uma verdadeira negação do direito fundamental de recurso contencioso;

- Princípio da separação entre a Administração e a Justiça, artigos 114º, 205º e seguintes e 266º e seguintes da CRP, por fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da não utilização de uma garantia administrativa;

- Princípio da desconcentração administrativa, artigo 267º/2 da CRP, que implica a imediata recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, pois o superior continua a dispor de competência revogatória, artigo 142º CPA.

- Princípio da Efectividade da Tutela, artigo 268º/4 CRP, em razão do efeito preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não ter havido interposição prévia de recurso hierárquico no prazo de 30 dias, reduzindo assim, o prazo de impugnação de actos administrativos, o qual, por ser demasiado curto, poderia equivaler à inutilização da possibilidade de exercício do direito.

Com a reforma do contencioso administrativo, o legislador veio afastar a necessidade de recurso hierárquico como condição de acesso à justiça administrativa, vindo reforçar de forma expressa a tese defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva.

Posição contrária é sustentada pelo Professor Mário Aroso de Almeida, defendendo que o CPTA não tem o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias.
Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos sem necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa.
Na opinião deste Professor, as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, sendo considerada uma opção consciente e deliberada por parte do legislador.
O Professor Mário Aroso de Almeida rejeita desta forma, a tese da inconstitucionalidade proclamada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, para tal apresentando os seguintes argumentos: não cabe à CRP estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação de actos administrativos; uma vez intentada a impugnação administrativa necessária, a via de reacção contenciosa a seguir, no caso de ela não surtir efeitos, será sempre a via impugnatória e a situação jurídica de fundo do interessado dirige-se à remoção de um acto administrativo de conteúdo positivo que foi ilegalmente praticado, sendo a utilização da impugnação administrativa necessária um mero requisito da observância do qual depende a abertura da via impugnatória.

Por sua vez, o Professor Vasco Pereira da Silva vem questionar os argumentos expostos pelo Professor Mário Aroso de Almeida:

- Não é possível compatibilizar a regra geral da admissibilidade de acesso à justiça, independentemente de recurso hierárquico necessário, com as regras especiais que manteriam tal exigência. Se a única razão de ser da necessidade do recurso hierárquico era a de permitir a impugnação do acto administrativo e se, agora, se consagra sempre a possibilidade de impugnação contenciosa imediata dessa decisão administrativa, independentemente da via administrativa prévia e do respectivo efeito suspensivo, qual é o sentido de considerar que tal exigência se mantém, apesar de já não poder produzir qualquer efeito do ponto de vista contencioso? Considerar que o recurso hierárquico passou a ser sempre desnecessário, mas que ele pode continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação, mesmo quando já não pode mais continuar a ser considerado como condição de impugnação é uma contradição insanável;

- Diz-se que o CPTA revogou a regra geral do recurso hierárquico necessário mas não as regras especiais. Admitindo que isso seria assim, seria forçoso concluir que, antes da reforma, tais normas ditas especiais não possuíam especialidade nenhuma, pois apenas eram a confirmação ou a reiteração da regra geral da impugnação hierárquica necessária, pelo que se deverão considerar igualmente revogadas pela revogação da regra geral;

- Problema do relacionamento entre as normas do CPTA, que permitem o acesso imediato ao juiz sem qualquer condição de utilização prévia de tais vias administrativas, e as normas que continuam a prever a existência de garantias administrativas necessárias, está relacionado com o fenómeno de caducidade de tais normas por falta de objecto.
Se o CPTA estabelece que a garantia prévia não é mais um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, só pode significar que a exigência do recurso hierárquico necessário em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, pelo que se deve considerar que tais normas caducam, pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que as justificavam. Isto vale tanto para previsões especiais de garantias administrativas necessárias que sejam anteriores como posteriores à reforma, sendo que a existir a criação destas últimas por parte do legislador, não teriam qualquer efeito útil já que seriam desprovidas de consequências contenciosas.

- Depois da concretização legislativa do direito fundamental de acesso à Justiça Administrativa, mediante a consagração da regra da desnecessidade de impugnação administrativa prévia ao acesso ao juiz, pudessem existir excepções a um tal regime, levando à criação de uma espécie de “contencioso privativo” de certas categorias de actos administrativos. Agora perante um novo regime jurídico concretizador das disposições constitucionais, e que afasta expressamente a exigência de recurso hierárquico necessário, não se vê como é que regras excepcionais ou avulsas, podem deixar de ser consideradas como incompatíveis com a CRP, por violação do conteúdo essencial do direito fundamental de acesso à justiça administrativa. Não só são desde logo de afastar disposições normativas, anteriores à reforma do contencioso, que previssem a necessidade de impugnação administrativa prévia, como também, eventuais derrogações legislativas posteriores do novo regime processual, por violação do conteúdo essencial do princípio da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares e do princípio da igualdade de tratamento das particulares perante a Administração e perante a justiça administrativa ao criarem privilégios para certas categorias de actos administrativos.

- O mérito deve prevalecer sobre as formalidades, o que implica a regra segundo a qual devem ser evitadas diligências inúteis, artigo 8º/2 CPTA. Não é possível imaginar nada mais inútil e desproporcionado do que continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal exigência deixou de ser um pressuposto processual de impugnação dos actos administrativos.

Com a invocação destes argumentos, que a meu ver devem proceder, o Professor Vasco Pereira da Silva avança com uma solução para este problema:

Compatibilizar os regimes jurídicos do procedimento e do processo, pela revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário, ao mesmo tempo que procedesse à generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, acompanhada da fixação de um prazo para o exercício da faculdade de impugnação administrativa pelos particulares.
O particular lesado por um acto administrativo de um subalterno pode optar por fazer uma de três coisas:

- Intentar a acção administrativa especial, acompanhada ou não do respectivo pedido cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo, optando exclusivamente pela via judicial para a resolução do litígio;

- Proceder à prévia impugnação hierárquica que, para além do efeito geral de suspensão do prazo de recurso contencioso, deve continuar a gozar, de efeito suspensivo da execução do acto administrativo e, só depois, em função do resultado da garantia administrativa, utilizar ou não a via contenciosa;

-Impugnar hierarquicamente a decisão administrativa, mas tendo a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal sem ter necessidade de esperar pela decisão do recurso hierárquico.
Em conclusão, a nossa jurisprudência tem entendido que só há inconstitucionalidade se o percurso imposto por lei para alcançar a via contenciosa suprimir ou restringir intoleravelmente o direito de acesso ao tribunal ou, por qualquer forma, prejudicar de forma desproporcionada a tutela judicial efectiva dos cidadãos, o que, na opinião do STA, não acontece com as impugnações administrativas necessárias.

A jurisprudência não exclui e reconhece a tendência para o alargamento da possibilidade de impugnação directa e imediata dos actos administrativos e admite mesmo a possibilidade futura de vir a ser sustentada a inconstitucionalidade das disposições avulsas que prescrevem uma prévia reclamação ou recurso administrativo necessário, por violação do artigo 268º/4 da CRP, mas o certo é que acabou por entender que se mantêm em vigor as normas específicas anteriores ao CPTA que, tornavam a impugnação contenciosa dos actos praticados por órgãos subalternos dependente de prévia impugnação hierárquica.

domingo, 25 de abril de 2010

Pode o juiz administrativo carrear factos novos para o processo ou isso fará dele uma parte processual? – Reflexões sobre o problema

Tal como acontece no Direito Processual Civil, no Contencioso Administrativo o juíz está vinculado, à partida, ao princípio do dispositivo: o objecto do processo está na disponibilidade das partes, a quem cabe o ónus de alegação, a invocação dos factos integrantes da causa de pedir, e a sua respectiva prova.

No campo do objecto e limites à decisão final do processo administrativo o art.95º/1 CPTA é claro ao referir que na sentença ou acordão final devem ser apreciadas todas as questões que tenham sido submetidas pelas partes ao tribunal e apenas estas. Parece assim ter de ser negativa a resposta a dar à questão levantanda: o juíz administrativo não pode carrear para o processo factos novos, sob pena de desrespeito face àquela disposição legal.

A questão é todavia mais complexa do que pode parecer à partida.

Desde logo no Contencioso Administrativo a doutrina identifica dois tipos de pedidos válidos, em razão da visão subjectivista do processo: um pedido imediato, que respeita aos efeitos que a parte pretende ver concretizados; e um pedido mediato, o direito que o efeito atrás pedido visa tutelar. Este último pode não ser sequer alegado pelo particular, no entanto o juíz administrativo vai o ter em conta, concretizando o princípio do contencioso de plena jurisdição, com a atribuição dos poderes necessários ao tribunal para a tutela efectiva dos direitos dos particulares. O Prof. Vasco Pereira da Silva apresenta no manual um exemplo desta ideia, que me parece ilucidativo acerca da acção administrativa especial, na modalidade de impuganção de actos administrativos: “da prespectiva do particular, o seu pedido imediato, a anulação ou declaração de nulidade ou de inexistência do acto administrativo, é incidível da protecção do direito subjectivo lesado, que constitui o seu pedido mediato”. Assim o juiz administrativo pode ter em conta factos novos, no sentido de não alegados pelas partes, sem isso o tornar uma parte processual.

Mas outros exemplos extraídos do Processo Civil podem ser a este respeito invocados, nomeadamente admitindo a aplicação ao Contencioso Administrativo do princípio do inquisitório: na definição do Prof.Teixeira de Sousa, “ permite que o tribunal investigue e esclareça os factos relevantes para a aprecisção da acção”. Se é imperativo integrar os factos essenciais no objecto da causa, por força do princípio do dispositivo, e assim fora do raio de acção do juíz adminsitrativo, já os factos instrumentais, aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem auxiliar o tribunal na sua demonstração, cabem nos poderes do juíz, sem grandes restrições, podendo conhecer de factos instrumentais não alegados, e tomar diligências probatórias a seu respeito.

No mesmo sentido se pode falar nos factos de conhecimento oficioso, assim identificados nos termos da lei, tomados em conta independentemente da sua alegação ou não pelas partes, quer em relação a questões de direito, quer à matéria de facto, nomeadamente através dos factos notórios, os de conhecimento geral ou senso comum, e dos factos de conhecimento funcional,
aqueles que são conhecidos em virtude do exercício normal das funções do tribunal e do juíz.

Conclui-se então que a resposta à pergunta inicialmente formulada tem de ser sim, o juíz administrativo pode carrear factos novos para o processo, e isso não faz dele uma parte processual, mas apenas um órgão dinâmico e atento, procurando ver esclarecidas todas as questões relevante para o mérito da causa que tem em mãos, com respeito pelos limites que lhe são impostos.

Catarina Salvaterra
Subturma 7