segunda-feira, 26 de abril de 2010

Recurso Hierárquico Desnecessário Necessário

A grande questão que se coloca é a de saber se a impugnação contenciosa de actos administrativos se encontra dependente ou não, da prévia utilização, pelo impugnante, de vias de impugnação administrativas e, em particular, da interposição de recurso hierárquico necessário.
A distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo tinha única e exclusivamente que ver com a questão de saber se o acto administrativo era ou não susceptível de recurso contencioso, artigo 167º/1 do CPA.

Desta forma, a necessidade do recurso hierárquico apenas dizia respeito à impugnabilidade contenciosa, constituindo um mero pressuposto processual.
O acto administrativo praticado pelo subalterno era idêntico ao praticado pelo superior hierárquico, produzindo os mesmos efeitos jurídicos, pelo que a necessidade da intervenção do órgão de topo da hierarquia só se verificaria se o particular pretendesse contestá-lo judicialmente.

Actualmente, o CPTA não exige que os actos administrativos sejam objecto de prévia impugnação administrativa, para que possam ser objecto de impugnação contenciosa.
Decorre dos artigos 51º e 59º/4 e 5 do CPTA ,que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa:

-Artigo 51º/1 do CPTA: Consagração da impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, ou que seja dotado de eficácia externa.
Ao não existir qualquer referência à necessidade de prévia interposição de uma garantia administrativa para o uso de meios contenciosos, ela deve ser considerada afastada pela legislação contenciosa, bem como relativamente a qualquer lei avulsa que consagre a obrigatoriedade de recurso hierárquico.

- Artigo 59º/4 do CPTA: Atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas.
Tem como objectivo, conferir uma maior eficácia à utilização de garantias administrativas, dado que o particular, que decida optar previamente por essa via, sabe agora que o prazo para a impugnação contenciosa só voltará a correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação do acto administrativo.
Da perspectiva do particular, passa a poder valer a pena solicitar previamente uma segunda opinião por parte da Administração, não vendo precludido o seu direito de impugnação contenciosa pelo decurso do prazo, restando esperar que, do lado da Administração, as garantias administrativas sejam efectivamente consideradas como uma oportunidade de proceder à reapreciação da questão e aproveitadas para satisfazer as pretensões dos privados. Só assim as garantias administrativas podem funcionar como verdadeiros instrumentos de protecção subjectiva e de tutela objectiva da legalidade e do interesse público, adquirindo uma função de composição preventiva de litígios contenciosos.
Desta forma, o recurso hierárquico passou a ser sempre desnecessário mas também útil.

- Artigo 59º/5 do CPTA: Estabelecimento da regra segundo a qual, mesmo que o particular utilize previamente uma garantia administrativa e beneficie da consequente suspensão do prazo de impugnação contenciosa, não impede a possibilidade de imediata impugnação contenciosa do acto administrativo.
Encontra-se aqui patente o afastamento inequívoco da necessidade de recurso hierárquico, pois é sempre possível ao particular aceder de imediato à via contenciosa independentemente de ter ou não ter feito uso da via graciosa.

Na opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, a exigência do prévio esgotamento das garantias administrativas como condição necessária de acesso aos tribunais constituía, uma das manifestações dos “traumas de infância” do Contencioso Administrativo, enquanto resquício dos tempos do administrador-juiz.
O Professor sempre defendeu a inconstitucionalidade da regra do recurso hierárquico necessário, com base nos seguintes argumentos:

- Princípio da Plenitude da tutela dos direitos dos particulares, artigo 268º/4 da CRP, pois a inadmissibilidade de recurso contencioso, quando não tenha existido previamente o recurso hierárquico necessário, equivale a uma verdadeira negação do direito fundamental de recurso contencioso;

- Princípio da separação entre a Administração e a Justiça, artigos 114º, 205º e seguintes e 266º e seguintes da CRP, por fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da não utilização de uma garantia administrativa;

- Princípio da desconcentração administrativa, artigo 267º/2 da CRP, que implica a imediata recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, pois o superior continua a dispor de competência revogatória, artigo 142º CPA.

- Princípio da Efectividade da Tutela, artigo 268º/4 CRP, em razão do efeito preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não ter havido interposição prévia de recurso hierárquico no prazo de 30 dias, reduzindo assim, o prazo de impugnação de actos administrativos, o qual, por ser demasiado curto, poderia equivaler à inutilização da possibilidade de exercício do direito.

Com a reforma do contencioso administrativo, o legislador veio afastar a necessidade de recurso hierárquico como condição de acesso à justiça administrativa, vindo reforçar de forma expressa a tese defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva.

Posição contrária é sustentada pelo Professor Mário Aroso de Almeida, defendendo que o CPTA não tem o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias.
Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos sem necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa.
Na opinião deste Professor, as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, sendo considerada uma opção consciente e deliberada por parte do legislador.
O Professor Mário Aroso de Almeida rejeita desta forma, a tese da inconstitucionalidade proclamada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, para tal apresentando os seguintes argumentos: não cabe à CRP estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação de actos administrativos; uma vez intentada a impugnação administrativa necessária, a via de reacção contenciosa a seguir, no caso de ela não surtir efeitos, será sempre a via impugnatória e a situação jurídica de fundo do interessado dirige-se à remoção de um acto administrativo de conteúdo positivo que foi ilegalmente praticado, sendo a utilização da impugnação administrativa necessária um mero requisito da observância do qual depende a abertura da via impugnatória.

Por sua vez, o Professor Vasco Pereira da Silva vem questionar os argumentos expostos pelo Professor Mário Aroso de Almeida:

- Não é possível compatibilizar a regra geral da admissibilidade de acesso à justiça, independentemente de recurso hierárquico necessário, com as regras especiais que manteriam tal exigência. Se a única razão de ser da necessidade do recurso hierárquico era a de permitir a impugnação do acto administrativo e se, agora, se consagra sempre a possibilidade de impugnação contenciosa imediata dessa decisão administrativa, independentemente da via administrativa prévia e do respectivo efeito suspensivo, qual é o sentido de considerar que tal exigência se mantém, apesar de já não poder produzir qualquer efeito do ponto de vista contencioso? Considerar que o recurso hierárquico passou a ser sempre desnecessário, mas que ele pode continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação, mesmo quando já não pode mais continuar a ser considerado como condição de impugnação é uma contradição insanável;

- Diz-se que o CPTA revogou a regra geral do recurso hierárquico necessário mas não as regras especiais. Admitindo que isso seria assim, seria forçoso concluir que, antes da reforma, tais normas ditas especiais não possuíam especialidade nenhuma, pois apenas eram a confirmação ou a reiteração da regra geral da impugnação hierárquica necessária, pelo que se deverão considerar igualmente revogadas pela revogação da regra geral;

- Problema do relacionamento entre as normas do CPTA, que permitem o acesso imediato ao juiz sem qualquer condição de utilização prévia de tais vias administrativas, e as normas que continuam a prever a existência de garantias administrativas necessárias, está relacionado com o fenómeno de caducidade de tais normas por falta de objecto.
Se o CPTA estabelece que a garantia prévia não é mais um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, só pode significar que a exigência do recurso hierárquico necessário em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas, pelo que se deve considerar que tais normas caducam, pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que as justificavam. Isto vale tanto para previsões especiais de garantias administrativas necessárias que sejam anteriores como posteriores à reforma, sendo que a existir a criação destas últimas por parte do legislador, não teriam qualquer efeito útil já que seriam desprovidas de consequências contenciosas.

- Depois da concretização legislativa do direito fundamental de acesso à Justiça Administrativa, mediante a consagração da regra da desnecessidade de impugnação administrativa prévia ao acesso ao juiz, pudessem existir excepções a um tal regime, levando à criação de uma espécie de “contencioso privativo” de certas categorias de actos administrativos. Agora perante um novo regime jurídico concretizador das disposições constitucionais, e que afasta expressamente a exigência de recurso hierárquico necessário, não se vê como é que regras excepcionais ou avulsas, podem deixar de ser consideradas como incompatíveis com a CRP, por violação do conteúdo essencial do direito fundamental de acesso à justiça administrativa. Não só são desde logo de afastar disposições normativas, anteriores à reforma do contencioso, que previssem a necessidade de impugnação administrativa prévia, como também, eventuais derrogações legislativas posteriores do novo regime processual, por violação do conteúdo essencial do princípio da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares e do princípio da igualdade de tratamento das particulares perante a Administração e perante a justiça administrativa ao criarem privilégios para certas categorias de actos administrativos.

- O mérito deve prevalecer sobre as formalidades, o que implica a regra segundo a qual devem ser evitadas diligências inúteis, artigo 8º/2 CPTA. Não é possível imaginar nada mais inútil e desproporcionado do que continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal exigência deixou de ser um pressuposto processual de impugnação dos actos administrativos.

Com a invocação destes argumentos, que a meu ver devem proceder, o Professor Vasco Pereira da Silva avança com uma solução para este problema:

Compatibilizar os regimes jurídicos do procedimento e do processo, pela revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário, ao mesmo tempo que procedesse à generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, acompanhada da fixação de um prazo para o exercício da faculdade de impugnação administrativa pelos particulares.
O particular lesado por um acto administrativo de um subalterno pode optar por fazer uma de três coisas:

- Intentar a acção administrativa especial, acompanhada ou não do respectivo pedido cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo, optando exclusivamente pela via judicial para a resolução do litígio;

- Proceder à prévia impugnação hierárquica que, para além do efeito geral de suspensão do prazo de recurso contencioso, deve continuar a gozar, de efeito suspensivo da execução do acto administrativo e, só depois, em função do resultado da garantia administrativa, utilizar ou não a via contenciosa;

-Impugnar hierarquicamente a decisão administrativa, mas tendo a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal sem ter necessidade de esperar pela decisão do recurso hierárquico.
Em conclusão, a nossa jurisprudência tem entendido que só há inconstitucionalidade se o percurso imposto por lei para alcançar a via contenciosa suprimir ou restringir intoleravelmente o direito de acesso ao tribunal ou, por qualquer forma, prejudicar de forma desproporcionada a tutela judicial efectiva dos cidadãos, o que, na opinião do STA, não acontece com as impugnações administrativas necessárias.

A jurisprudência não exclui e reconhece a tendência para o alargamento da possibilidade de impugnação directa e imediata dos actos administrativos e admite mesmo a possibilidade futura de vir a ser sustentada a inconstitucionalidade das disposições avulsas que prescrevem uma prévia reclamação ou recurso administrativo necessário, por violação do artigo 268º/4 da CRP, mas o certo é que acabou por entender que se mantêm em vigor as normas específicas anteriores ao CPTA que, tornavam a impugnação contenciosa dos actos praticados por órgãos subalternos dependente de prévia impugnação hierárquica.

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