sábado, 24 de abril de 2010

Impugnação Administrativa enquanto “causa desnecessária” para a Impugnação Contenciosa do Acto Administrativo - O Recurso Hierárquico (Des)Necessário

i) Considerações iniciais.

Os recursos administrativos, segundo o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, inserem-se dentro da categoria de procedimentos administrativos de controlo (estes “visam a produção de decisões de apreciação de condutas administrativas anteriores, positivas ou omissivas”), mais especificamente, nos procedimentos de controlo de iniciativa particular. Na medida em que segundo o art. 52º/1 da CRP, os particulares têm um direito fundamental à apresentação, individual ou colectiva, perante quaisquer autoridades, de petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, protegidos pela CRP ou quaisquer outras leis. Posto isto, quando o órgão ad quem (órgão competente para decidir) do procedimento de controlo é diverso do autor do acto (órgão a quo) cuja apreciação se pretende, estamos perante a figura do recurso. Este recurso será um recurso hierárquico se o órgão ad quem for superior hierárquico do órgão a quo (art. 158º/, nº2, alínea b) CPA).

ii) Recurso Hierárquico

Depois de já ter sido delimitado o conceito de recurso administrativo, torna-se agora pertinente aprofundar o conceito de recurso hierárquico. Recorrendo novamente à doutrina do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, o recurso hierárquico consiste “num mecanismo através do qual o superior hierárquico tem a faculdade de exercer os seus poderes de intervenção sobre o resultado do exercício das competências do seu subalterno”. Deste modo, perante uma decisão desfavorável e lesiva dos seus interesses, o particular tem a faculdade de interpor recurso dessa mesma decisão para o superior hierárquico do subalterno que praticou o acto (nos termos do art. 166º do CPA), sendo que nesse recurso o superior hierárquico poderá fazer valer os seus poderes de supervisão e de substituição em relação à actuação do subalterno. Assim, o recurso hierárquico consiste num meio de impugnação administrativa que comporta a faculdade de o particular impugnar o acto praticado pelo subalterno junto do seu superior hierárquico.

Perante isto, o recurso hierárquico poderá ser necessário (se incidir sobre um acto administrativo insusceptível de impugnação contenciosa) ou facultativo (se incidir sobre um acto administrativo susceptível de impugnação jurisdicional), tal como estabelece o artigo 167º, nº1 do CPA.

iii) O Papel do Recurso Hierárquico Necessário no Contencioso Administrativo, no âmbito da Impugnação de Actos Administrativos.

Antes da Reforma do Contencioso Administrativo, para além da necessidade de eficácia externa e de lesão dos direitos do particular, para que o acto administrativo fosse impugnável em via contenciosa era exigido o prévio esgotamento das garantias administrativas, isto é, só se poderia recorrer à impugnação contenciosa do acto depois de esgotada a impugnação administrativa do acto. Neste contexto, o recurso hierárquico necessário surge como um pressuposto processual de importância indispensável para a faculdade de uso da via contenciosa por parte do particular.

Já nesta altura, quando o recurso hierárquico necessário era um pressuposto processual, o Prof. Vasco Pereira da Silva contestava a legalidade e a constitucionalidade desta exigência, defendo a sua inconstitucionalidade, arguindo diversos argumentos sobre a violação de vários princípios constitucionais. Seria de destacar um desses argumentos: esta exigência violaria o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares, estipulado no art. 268º, nº 4 da CRP, pois seria uma completa e inadmissível negação do direito fundamental de recurso contencioso, se este só fosse possível depois de ter havido prévio recurso hierárquico necessário.

Nesta fase, o Prof. Vasco Pereira da Silva defendia esta posição de forma isolada e afastada na doutrina e, também, em relação ao que era defendido na jurisprudência. Contudo, a evolução, o tempo e a reforma do contencioso administrativo, veio “sem piedade” e contra a maioria dar razão ao Professor, através do afastamento inequívoco e expresso da necessidade de recurso hierárquico como condição essencial e intrínseca de acesso à justiça administrativa. Hoje, o recurso hierárquico necessário é desnecessário. Hoje, os actos do subalterno podem ser impugnados por via contenciosa quando preencherem o requisito da exterioridade da sua eficácia e da lesão dos direitos do particular.

Seguindo a doutrina do Prof. Vasco Pereira da Silva, analisemos os preceitos legais do CPTA que refutam toda esta mudança de paradigma.

Em primeiro lugar, o art. 51º, nº1 apenas estipula a impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo susceptível de lesar direitos e dotados de eficácia externa (nada é dito sobre a necessidade de prévia interposição de uma garantia administrativa para uso da impugnação contenciosa). Conclusão: recurso hierárquico necessário não é um pressuposto processual.

Em segundo lugar, o art. 59º, nº4 consagra a atribuição de um efeito suspensivo do prazo de impugnação pela via contenciosa do acto administrativo quando o particular utilize os meios de impugnação administrativa. Deste modo, no caso de o particular escolher previamente o uso da via administrativa para a impugnação, o prazo para a impugnação contenciosa só voltará a correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação do acto, pela via administrativa. É aqui que se dá o importante desempenho do recurso hierárquico necessário no actual contencioso administrativo: o particular pode requerer previamente à impugnação contenciosa uma “segunda opinião” à Administração (utilizando as palavras do Professor), não vendo afectado o seu direito à dita impugnação por via contenciosa pelo decurso do prazo. Assim, em resposta à pergunta: ”O recurso hierárquico necessário tornou-se mesmo desnecessário ou ainda desempenha alguma função relevante?” Respondemos: o recurso hierárquico necessário tornou-se claramente desnecessário mas deveras utilitário, na medida em que se for requerido um recurso hierárquico previamente à impugnação contenciosa, não só esse recurso não afecta o prazo para requerer a dita impugnação como, exercendo uma função preventiva de litígios contenciosos (pois o conflito pode ficar logo aí resolvido, dando-se razão ao particular e retirando ou alterando a eficácia do acto administrativo), protege as posições subjectivas dos particulares e, em certa medida, a tutela objectiva da legalidade e dos interesses públicos. Assim, recorrendo uma vez mais ao nosso Professor: “o recurso hierárquico necessário é hoje desnecessário, mas bastante útil”.

Em terceiro lugar, o art. 59º, nº5 , na sequência da opção referida acima, consagra o livre e “desinibido” recurso à impugnação por via contenciosa. Assim, mesmo que o particular opte pela via administrativa, não há nada que o impeça de imediatamente impugnar por via contenciosa o acto. Independentemente de o particular ter feito uso ou não dos meios de impugnação administrativa, ele pode aceder imediatamente à via contenciosa.

Em suma, o CPTA consagrou um regime jurídico que consagra o imediato e livre acesso à apreciação contenciosa dos actos administrativos, eliminando a prévia exigência de interposição de um meio de impugnação administrativa, em especial do recurso hierárquico necessário.

iv) Após o afastamento da regra de prévio recurso às garantias administrativas como condição necessária de acesso aos tribunais por via de impugnação contenciosa do acto administrativo, o que fazer em relação às regras existentes em diplomas avulsos que exigem como pressuposto processual o recurso hierárquico necessário?

Na doutrina existem duas soluções para este problema: uma delas defende uma interpretação restritiva do regime do CPTA, outra que defende a inconstitucionalidade de qualquer relevância dada a essas normas.

Analisemos, em primeiro lugar, a posição, que o Prof. Vasco Pereira da Silva apelida de “interpretação restritiva” ou “minimalista”. Esta defende que a nova concepção do regime jurídico do CPTA após a reforma, no que toca ao afastamento da exigência de prévio recurso hierárquico necessário para possibilidade de impugnação contenciosa do acto, comporta apenas a revogação da regra geral da exigência do recurso hierárquico necessário do CPTA, mas que não abrangeria a revogação das regras especiais que visassem tal exigência. O argumento arguido refere que o CPTA não teria o alcance de revogar as normas avulsas que instituíssem impugnações administrativas de cariz necessário e indispensável. Isto só aconteceria com um preceito legal expresso que ditasse a revogação de todas essas regras. Posto isto, as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a garantias administrativas necessárias em todos os casos em que tal seja estipulado expressamente pela lei. Esta é a posição do Professor Mário Aroso de Almeida e do Professor Vieira de Andrade.

Do outro lado da “barricada”, temos o Prof. Vasco Pereira da Silva que rejeita liminarmente esta posição, apresentando argumentos críticos de ordem formal e substancial. Em primeiro lugar, seria uma completa contradição o refutado pela doutrina acima, uma vez que, por um lado, defendia que o recurso hierárquico passou de necessário a sempre desnecessário, mas que, por outro lado, poderia continuar a ser necessário quando leis o estipulem, mesmo que já não pudesse continuar a ser considerado como condição da impugnação, utilizando a expressão do Professor, isto seria um completo “absurdo”. Em segundo lugar, também não faria qualquer sentido a ideia de que: o CPTA seria a regra geral (recurso hierárquico desnecessário) e que as leis avulsas seriam regras especiais (recurso hierárquico necessário); recorrendo ao regime anterior à reforma, havia uma coincidência entre o estipulado no CPTA e o estipulado nessas leis avulsas, logo estas não seriam especiais em relação à primeira mas seriam uma confirmação da regra geral; isto é, se antes não eram especiais, agora muito menos o serão, logo não faz sentido apelar e defender o princípio geral de que a “regra geral não revoga a regra especial” (art. 7º, nº3 C.C.). Por último, o Professor defende que a aceitação deste regime diferenciado (por um lado, no âmbito do CPTA o recurso hierárquico não é necessário para haver impugnação contenciosa, mas por outro lado, há leis avulsas que o exigem) seria incompatível com a nossa CRP, na medida em que estar-se-ia a aceitar excepções ao regime consagrado no art. 268º, nº4 da CRP, que estipula a desnecessidade de impugnação administrativa prévia para ter acesso à via contenciosa, tal seria inadmissível e estaria dotado de uma “inconstitucionalidade insanável”.

Posto isto, o que dizer? Bom, na minha opinião, parece-me que os argumentos do Prof. Vasco Pereira da Silva “bloqueiam” completamente qualquer tipo de evolução de um raciocínio diverso, pois são indiscutíveis e líquidos os argumentos em favor da inconstitucionalidade da aceitação do regime diferenciado e, em especial, o argumento que defende que “não existe qualquer lei especial”. Parece-me perante melhor argumentação a “boa doutrina” está do lado do Prof. Vasco Pereira da Silva, por duas razões: primeiro, os argumentos invocados pela doutrina da interpretação minimalista visa apenas ressalvar a vigência das leis avulsas, isto é, dar-lhe alguma utilidade normativa, uma vez que não houve revogação expressa; segundo, não há como fazer passar, a visão da validade e eficácia dessas leis que estipulam a necessidade de impugnação administrativa, “por cima” do regime constitucional, em especial, do art. 268º, nº4. Assim, adoptamos a posição do Prof. Vasco Pereira da Silva, sendo tais leis inconstitucionais ou, por outra forma, a sua caducidade por falta de objecto.

Assim sendo, apesar de o Prof. Vasco Pereira da Silva defender a caducidade dessas normas, e não a sua revogação pela reforma, este problema era facilmente resolvido com a revogação expressa de tais leis avulsas. Parece-nos que pode ser defendida uma revogação tácita, sendo que a existência de um preceito expresso teria apenas a vantagem de acabar com esta divergência doutrinária.

Cristiano Dias, Subturma 8

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