Como salienta o Professor Vasco.P.Silva, “a legitimidade constitui um elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais.”
Sendo um conceito de teoria geral do direito, a legitimidade tem sido utilizada tanto no direito material como no direito processual, sendo por isso costume distinguir e relacionar uma legitimidade material e uma legitimidade processual.
Grosso modo, parece possível afirmar que a legitimidade corresponde a uma certa posição de um sujeito face ao objecto de um acto que é exigida pelo direito para a sua prática, entendido o objecto do acto como a concreta situação jurídica sobre a qual incidirá ou que resultara da sua actuação. Essa actuação sobre uma situação jurídica pode traduzir-se em diversas formas, maxime, disposição, constituição(originaria ou derivada), seja de uma situação activa(acto de aquisição) seja de uma situação passiva(acto de vinculação), extinção de uma situação activa ou passiva(acto liberativo).
Tradicionalmente, aponta-se como questão operatória subjacente ao conceito de legitimidade a susceptibilidade de dispor de certa e determinada posição jurídica. Assim, in concreto, pergunta-se: pode o sujeito dispor de certa posição jurídica?
Ora, sindicando o problema do campo material e trazendo-o para o campo processual, a verdade é que também aqui ele se faz sentir. Quem pode ser parte numa dada e concreta causa? Ou de forma mais concisa, quem pode processualmente dispor, através da pratica dos respectivos actos e da sujeição a uma sentença, de determinada posição jurídica?
Uma vez ultrapassada a concepção clássica (que configurava a legitimidade em função do interesse dos particulares no afastamento do acto administrativo, interesse esse que teria de ser: pessoal, directo e legítimo) o novo contencioso administrativo incorporou um principio geral de legitimidade, maxime, de aferição da legitimidade, basilarmente assente na alegação da posição de parte da relação material controvertida (artigo 9º do CPTA).Nesta senda, a legitimidade afere-se hoje em função da posição dos sujeitos e da alegação de direitos e deveres recíprocos na relação substantiva.
Destarte, sem prejuízo da aparente facilidade do critério, a verdade é que, como passaremos a demonstrar, este (em especial por força da necessidade da sua conjugação com outros preceitos, designadamente, art.55/1 CPTA)) não se encontra isento de dificuldades dogmáticas e divergências doutrinárias, as quais incidem não só sobre a extensão/delimitação dos conceitos ínsitos na sua aplicação, mas também sobre a necessidade da sua articulação com outros preceitos também eles respeitantes á legitimidade processual.
Com efeito, para além do princípio geral consubstanciado no artigo supramencionado, a matéria da legitimidade também se encontra prevista nos artigos:40º, respeitante à legitimidade em acções relativas a contratos e 55º, 68º, 73º e 77º, referente às pretensões que se pretendem fazer valer por via de acção administrativa especial.
Diz-nos o artº9/1 que “Sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no artigo 40.º e ano âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste Código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”.
Da leitura do preceito, de resto análogo ao art.26/3 CPC, parece de concluir por uma situação de situação de ilegitimidade, sempre que o autor não seja titular da relação material controvertida por ele alegada. Efectivamente, não pode ter legitimidade para propôr uma acção ou ser nela demandado quem materialmente não pode dispôr da situação que será objecto dos efeitos da decisão final, é a chamada legitimidade processual directa.
Assim, ao contrário do art.º 55/1 CPTA, que exige para efeitos de propositura da acção administrativa especial, a titularidade de um interesse pessoal e directo (vide, infra), o art 9º parece bastar-se para efeitos de legitimidade na acção administrativa comum, com a mera alegação de titularidade da relação material objecto do litígio (sendo que essa titularidade é aferida em função do que o autor alega). Ora, tendo em consideração que é o autor quem define na petição inicial a própria relação cuja titularidade vai alegar, a excepção de ilegitimidade só procederá quando (sem prejuizo da questão do interesse processual), nomeadamente, houver divergência entre quem o autor identifica como devedor da pretensão e quem ele demanda na petição ( relação existe, mas não está processual e subjectivamente configurada de acordo com a realidade que porventura lhe serviria de base)
Nesta eventualidade, adiantamos desde já, rara, estaremos perante uma excepção dilatória , que poderá ser alegada pelo réu na contestação(art.487/2 CPC ex vi art.1ºCPTA;art.89/1/d CPTA),ou conhecida oficiosamente pelo tribunal(em regra no despacho saneador 87º CPTA).Deverá então juiz providenciar pelo suprimento do vicio, convidando as partes para tal, em prazo por si fixado(art.88/2 CPTA). Ora nesta senda, parece de concluir que o artº9 implica, quanto aos demais casos, consequências no momento do conhecimento do mérito da causa, pois que se antes ( tal como na anterior redacção do actual art. 26/3 do CPC) o juiz podia logo no saneador absolver o réu da instancia por ilegitimidade e terminar a instância , agora de duas uma: ou pode conhecer logo do mérito da causa e profere sentença (artº87/1/b CPTA), ou continuará a acção nos seus termos.
Assim, parece possível afirmar, que haverá maior possibilidade de produção antecipada da decisão de mérito, pois as situações que fundamentavam decisão de forma no despacho saneador fundamentam, agora, decisão de fundo.
Ora, em jeito de conclusão, resta saber porque redundante e inútil em face da função própria da procedência da acção, fará sentido, de iure condendo, a existência de legitimidade enquanto pressuposto processual especifico(salvo nos casos de legitimidade indirecta em que não há identidade entre titularidade /legitimidade material).Neste sentido parece também apontar o princípio da prevalência das decisões de mérito sobre as de forma (art. 7º CPTA).
Posto, isto importa agora debruçarmo-nos sobre o sentido a dar á expressão “interesse pessoal e directo” utilizada pelo artº55 CPTA.
Segundo a douta posição do Professor Vasco.P.Silva o que está em causa no artigo 55º/1 a) do CPTA, é o exercício do direito de acção por privados que defendem os seus interesses próprios, mediante a alegação de uma “titularidade de posições subjectivas de vantagem” em face da Administração Pública.O “interesse pessoal e directo” corresponde assim a um direito subjectivo entendido em sentido amplo, rejeitando-se a tripartida distinção tradicional entre: direitos subjectivos stricto sensu, interesses legítimos e interesses difusos. Assim ao referir-se a “interesses directos e pessoais” o artº55 CPTA pretende tão só significar que gozam da acção para defesa de interesses próprios, todos os indivíduos que demonstrem ser titulares de uma posição jurídica de vantagem, ou sejam parte na relação material controvertida. Isto, porque e na medida em que o carácter pessoal e legítimo do interesse é uma decorrência lógica do direito subjectivo que o particular faz valer no processo.O interesse é pessoal, porque o particular alega a titularidade de um direito que foi lesado por uma conduta ilegal da Administração e é legítimo na medida em que esse direito lhe foi conferido pelo ordenamento, através da intermediação de uma norma atributiva de um direito ou através da imposição em seu benefício, de um dever à Administração.
Um tanto ou quanto diversa é a posição dos ilustres Professores Vieira de Andrade e Aroso de Almeida, para quem “acção particular” prevista no artigo 55º/1 a) do CPTA, pode ser intentada por quem alegue ser titular de um potencial benefício, isto é, quem retirar imediatamente da anulação ou declaração de nulidade um qualquer benefício específico para a sua esfera jurídica.Para afirmar a legitimidade basta a titularidade de um interesse de facto para que o particular possa intentar a acção pretendida não se exigindo sequer que aquele seja um interesse legalmente protegido.Consequentemente, é titular de um “interesse directo” quem retire de forma imediata um qualquer benefício da acção e, é titular de um “interesse pessoal” quem retire esse benefício para a sua esfera jurídica mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada, podendo, como salienta Aroso de Almeida, esse beneficio traduzir-se tão só num afastamento de efeitos que no momento da impugnação se revelem efectiva ou potencialmente desfavoráveis.
Ora do confronto entre as posições, facilmente se conclui pelo carácter mais abrangente desta última. Destarte, se é certo que os interesses ínsitos no preceito não parecem passíveis de configurar-se como interesses meramente eventuais, hipotéticos, mediatos ou remotos, a verdade é que parece ter sido intenção do legislador proceder, porventura motivado pelo principio da plenitude da tutela jurisdicional (artº.268/4 CRP), ao alargamento das situações passíveis de conferir legitimidade processual activa. Contudo, qualquer que seja a posição que se queira, in concreto, perfilhar, a verdade é que independentemente da atribuição de legitimidade processual, a dignidade, a conveniência e a necessidade de tutela do “interesse” ou “direito subjectivo” será sempre tida em conta na apreciação do mérito da causa, maxime, na decisão de procedência ou improcedência da acção. Posto isto, cabe perguntar se o risco de multiplicação de processos não será a contrapartida, porventura necessária, de um alargamento da tutela jurisdicional efectiva a um leque mais vasto de situações.
Por último, parece-me ainda de salientar um aspecto respeitante á legitimidade passiva, que pelo desvio que implica relativamente ás nossas conhecidas regras de processo civil, se afigura como particularmente interessante.
Ora, quanto às regras conformadoras do pressuposto processual da legitimidade passiva em contencioso administrativo rege o art. 10º CPTA,
a regra geral está no nº1 :
"Cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor."
Chama-se a atenção para o nº4 :"O disposto nos dois números anteriores não obsta a que se considere regularmente proposta a acção quando na petição tenha sido indicado como parte demandada o órgão que praticou o acto impugnado ou perante o qual tinha sido formulada a pretensão do interessado"
Em termos de tramitação processual, saliente-se o disposto no art. 88º /2 CPTA: mesmo que o Juiz julgue procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva invocada pela Ré, tal não implicará, ao invés do que sucede no processo civil, a absolvição da instância.
Em contencioso administrativo, o Juiz proferirá despacho de aperfeiçoamento para, no prazo de 10 dias, a parte suprir a falta do pressuposto processual, neste caso, demandando a parte legítima.
Isto resulta também do princípio da prevalência das decisões de mérito sobre as de forma (art. 7º CPTA)
vide o Ac. TCA Sul de 8/5/2008, no qual se prescreve que :
· "A excepção da ilegitimidade passiva singular no contencioso administrativo é uma excepção suprível - artigo 89º, nºs 1 e 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos"
· "A decisão de absolvição da instância que pressupõe não ser suprível a excepção dilatória, não é compatível com a decisão de convite ao aperfeiçoamento que pressupõe exactamente o contrário, ser suprível a excepção dilatória"
· "Tendo sido demandado numa acção sobre responsabilidade o Ministério em vez do Estado, tendo em conta o princípio da prevalência das decisões de fundo sobre as decisões de forma, não deve ter lugar a absolvição da instância mas antes deve o autor ser convidado a suprir a excepção de ilegitimidade passiva que se verifica neste caso - artigos 7º, 11º, nº 2, e 88º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos"
quarta-feira, 28 de abril de 2010
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