“O entendimento do particular como titular de posições jurídicas substantivas face à administração vai implicar uma mudança radical no modo de considerar a figura da legitimidade processual”, Vasco Pereira da Silva, «Para um contencioso Administrativo dos particulares - Para um Contencioso Administrativo dos Particulares – Esboço de uma Teoria Subjectivista do Recurso Directo de Anulação», Coimbra, Almedina, 1997, pág. 122.
Com efeito, antes de entrar nos aspectos inovadores e mais problemáticos que o requisito processual legitimidade possa assumir no actual contencioso administrativo português, importa fazer uma breve referência ao modo como outrora fora configurado.
A concepção clássica do contencioso administrativo, nascida do modelo francês, não tratava o particular como parte no processo. O particular não fazia valer no processo nenhuma posição jurídica material, negava-se a titularidade de direitos subjectivos aos particulares nas relações administrativas, e por conseguinte entendia-se que o particular não era um sujeito mas um mero objecto do poder soberano, nas palavras de Hariou, a sua posição no processo era a “de um ministério público, efectuando a repressão de uma infracção” e não a de uma parte em sentido material.
Negando-se ao cidadão a qualidade de parte, a legitimidade do particular não era determinada pela relação jurídica material com a administração, mas variava consoante a maior ou menor abertura da política seguida pelo tribunal. Mais do que uma questão teórica a figura da legitimidade era uma questão de política jurisprudencial, (citando Marcelo Caetano) “ uma vez que se aceitou como expressão dogmática uma simples tentativa de sistematização teórica da jurisprudência do Conselho de Estado francês, jurisprudência que deliberadamente se mantém fluida e foge a conceitos precisos”. De acordo com esta lógica invertida a legitimidade processual, e não a titularidade de direitos pelos particulares, tornava-se a questão decisiva para indagar da efectividade do contencioso.
De acordo com a concepção clássica era a legitimidade que constituía o critério de acesso ao juiz e esta era determinada em razão do interesse (Considerado por Hariou como: 1, Directo ou imediato; 2, Pessoal: o interesse que justifica o recurso contencioso deve provir de uma situação jurídica em que se ache o reclamante relativamente ao acto atacado e à qual este possa causar dano; 3, Legítimo; resultante de uma situação jurídica definida em face da Administração, quer se trate de direitos, quer de situações provenientes de actos e decisões administrativas anteriores e com exclusão dos simples interesses de facto) dos particulares no afastamento do acto administrativo da ordem jurídica.
Atente-se, contudo, ao paradoxo existente na concepção clássica do contencioso administrativo, nomeadamente ao facto de por detrás desta noção processual de interesse esconder-se um entendimento já substantivo da posição do particular. Se por um lado recusava-se que o particular fizesse valer um direito no recurso, por outro a doutrina e jurisprudência apontavam para uma “substancialização” do interesse processual (uma vez que os requisitos de pessoal e legítimo não se referem apenas à relação processual mas apontam principalmente para a relação jurídica material). Tal como foi assinalado por Laligant, tratava-se de uma contradição entre a “doutrina oficial” do contencioso administrativo e a sua realidade prática.
No que concerne ao critério utilizado para a atribuição de legitimidade no novo contencioso administrativo português, este não podia ser mais diferente do critério adoptado pela concepção clássica.
O critério decorre agora da alegação da posição de parte na relação material controvertida (artigo 9º e seguintes do CPTA), a legitimidade afere-se em razão da posição dos sujeitos e da alegação de direitos e deveres recíprocos na relação substantiva. Tendo como objectivo assegurar a ligação entre a relação material substantiva e a relação processual, fazendo com que os participantes no processo sejam os efectivos sujeitos da relação material e não uma concepção que pretende substituir-se à consideração das situações jurídicas subjectivas das partes e arvorar-se em critério exclusivo de determinação do acesso ao juiz.
O novo CPTA instituiu, no seu artigo 9º um princípio geral de legitimidade activa, superando a concepção tradicional que assentava num mero tratamento fragmentário desta matéria por referência aos diversos meios processuais especialmente previstos. O legislador adoptou a técnica da lei processual comum (em correspondência com as normas dos artigos 26º e 26ºA do Código de Processo Civil), concentrando num único preceito os dois modelos típicos de legitimidade directa: art.9º nº1 – a pertinência da relação jurídica administrativa para as acções de função subjectiva (acção particular ou direito de acção por privados); art.9º nº2 – a titularidade de um interesse difuso no que se refere à acção popular.
1. Uma, Duas, Três, Quatro noções de Legitimidade Activa no âmbito do direito de acção por privados? (Art. 9º nº1;Art. 40º, nº1, alínea a; Art. 55º nº1 alínea a; Art. 68º nº 1, alínea a ; Art. 73º nº1 e 77º)
Ao definir como parte legítima o autor que “alegue ser parte na relação material controvertida”, o legislador no artigo 9º fornece um indicador seguro quanto à filosofia que enforma o figurino processual administrativo. Depois de ter reconhecido, no artigo 2º CPTA, um princípio de tutela jurisdicional efectiva, pelo qual se pretende assegurar aos cidadãos a plenitude do acesso à justiça administrativa, e de ter reforçado no art.3º os poderes do juiz administrativo, a regra de legitimidade enunciada no art.9º nº1 evidencia o propósito de construir todo o sistema judiciário em torno da figura da relação jurídica, afastando, à partida, qualquer interpretação restringente dos direitos processuais dos cidadãos no seu relacionamento com a administração.
Importa agora, neste momento da exposição, comentar a frase de Vasco Pereira da Silva com a qual iniciámos este comentário à legitimidade processual.
De facto, importa saber como se devem qualificar as posições jurídicas substantivas dos particulares face à Administração de modo a definir o conceito de legitimidade activa e por conseguinte, tentar perceber qual o objectivo do legislador quando utiliza expressões, tais como “ser parte na relação material controvertida” (art.9º nº1), “ interesse directo e pessoal”( art. 55º) , “titular de um direito ou interesse legalmente protegido” ( art. 68º), “seja prejudicado pela aplicação da norma” (art. 73), “alegue um prejuízo directamente resultante de omissão” (art. 77º), [ deixando de fora, pelo menos por agora, o conceito de “interesse legítimo” ( ou se preferirmos, “flogisto”, como considera Ledda), e os conceitos supra ou meta-individuais ( relativos ao conceito de legitimidade activa no seio da acção popular art.9º nº2) de: “interesses difusos”, ou “interesses difusos em sentido amplo” (que segundo Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, são decompostos em: interesses difusos em sentido estrito, interesses colectivos e interesses individuais homogéneos)].
Em suma, importa averiguar se o legislador quando utiliza expressões distintas (nomeadamente nos artigos atrás citados, 55º, 68º, 73º e 78º, relativos à acção administrativa especial, que afinal, é na realidade a comum…) está apenas a repetir (qual “ preocupação pedagógica”… ou não!) o que já vem elencado no art.9º, enquanto princípio geral, ou se por outro lado está propositadamente a estabelecer um regime especial (mais restrito ou amplo) em sede de legitimidade activa.
Entende Vasco Pereira da Silva que o sujeito privado é parte legítima sempre que alegue a titularidade de direito (s) subjectivo (s) ou seja, sempre que alegue a titularidade de posições de vantagem no âmbito da relação jurídica administrativa. Defendendo a existência de uma única categoria de situações jurídicas dos particulares, a dos direitos subjectivos, não se justificando a distinção clássica tripartida, proveniente da doutrina italiana, de: direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos. É a chama “teoria da norma de protecção” em que o indivíduo é titular de um direito subjectivo em relação à administração sempre que de uma norma jurídica que não vise apenas a satisfação do interesse público, mas também, a protecção dos particulares, resulte uma situação de vantagem objectiva dos privados perante a administração. Desta forma a diferença entre direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos, não seria uma diferença de natureza mas sim de conteúdo.
Deste modo, na opinião de Vasco Pereira da Silva, a expressão utilizada pelo legislador no art.55/1/a, ; no art. 68/1/a, ; no art. 73/1 [não entrando, pelo menos para já, na problemática (in)constitucional de tal preceito, relativa às condições legais de impugnação que diferem consoante a legitimidade activa do autor, mormente saber se é justificada tal diferença de legitimidade entre o Ministério Público e os restantes lesados] , não seria mais do que uma mera desadequada e desnecessária repetição do que já consta do princípio geral do art. 9/1. Os indivíduos que possuem um “interesse directo e pessoal” ou “que alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido” na demanda, seriam todos os indivíduos que possam alegar a titularidade de posições jurídicas de vantagem (adoptando uma noção ampla de direito subjectivo publico), ou seja, seriam parte legítima todos os indivíduos que possam alegar a qualidade de parte na relação material controvertida, isto porque, a alegação da qualidade de parte, engloba tanto os denominados direitos subjectivos (em sentido estrito), como os interesses legítimos, como ainda os interesses difusos.
Diferente opinião (aparentemente mais ampla do que Vasco Pereira da Silva), têm Aroso de Almeida, Vieira de Andrade e Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira.
Estes autores têm em comum o facto de defenderem que perante a expressão do artigo. 55/1/a, “ ser titular de um interesse directo e pessoal”, a lei não exige a titularidade de uma situação subjectiva lesada como critério de aferição da legitimidade activa. Como refere Vieira de Andrade, em “Justiça Administrativa”, 10ªedição, pág.221, nota de rodapé 455 “ relativamente à trilogia tradicional, deixou de se exigir que o interesse seja «legítimo» - não, com certeza, por tal interesse poder ser ilegítimo, mas para acentuar que basta um interesse de facto, não se exigindo a titularidade de um interesse legalmente protegido”.
Por conseguinte o preceito alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida (para efeitos do art.9º nº1) poder propor uma acção deste tipo, para tanto lhe bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, pelo acto que quer ver anulado. Sendo que o critério para se ajuizar da necessidade de tutela judicial é, precisamente, a utilidade ou vantagem que ele possa retirar da anulação contenciosa, atenta a sua intrínseca conexão com os efeitos imediatos do acto impugnado. “A legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem de basear-se na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, basta-se com a circunstância de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, de modo que a anulação ou declaração de nulidade desse acto lhe traz, pessoalmente a ele, uma vantagem directa, ou imediata”, Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ªedição, 2005 pág. 38. [Ora, esta interpretação do artigo 55/1/a, acaba por não se configurar mais ampla, chegando mesmo a coincidir com a posição de Vasco Pereira da Silva, “O contencioso administrativo no divã da psicanálise: ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2ª ed., Almedina, 2009, pág. 369. Senão vejamos: Vasco Pereira da Silva exige a alegação da titularidade de um direito subjectivo, pág 370, ao contrário Aroso de Almeida (pág40) e Vieira de Andrade (pág, 221, nota de rodapé 455 e 458, obra supra citada) e Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, em “Grandes linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, Almedina, 2007, pág.20, defendem não ser de exigir ao autor a alegação da titularidade de um direito ou interesse legalmente protegido ou mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada. Contudo, como explicado supra e face à má redacção de tal preceito, torna-se necessário adoptar uma noção ampla de direito subjectivo publico, englobando esta formulação qualquer situação que configure uma posição jurídica de vantagem para o particular, inclusive a vantagem directa, imediata e pessoal que o particular retira da anulação ou declaração de nulidade do acto.]
Importa ainda explicar o que se deve entender por interesse directo e pessoal. De facto, só haverá interesse processual impugnatório quando o benefício resultante da anulação ou declaração de nulidade do acto se repercutir de imediato na esfera do interessado; não poderá ser meramente eventual e longínquo. Ou seja interesses meramente eventuais, hipotéticos, mediatos ou indirectos, remotos ou diferidos não conferem legitimidade. A este respeito, importa mencionar os acórdãos do STA: Acórdão 8/Maio/ 1990, Processo 16380; Acórdão 27/ Novembro de 1996, Processo 28321; Acórdão 29/Outubro/2009, Processo 01054/08.
Como referem Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, o requisito de um interesse directo e pessoal no provimento da impugnação significa que a anulação (ou declaração de nulidade) do respectivo acto administrativo há-de traduzir-se numa vantagem ou num benefício específico imediato para a esfera jurídica ou económica do autor. Ou, mais uma vez, citando Vieira de Andrade, “mesmo que a norma pretensamente violada pela administração não vise a protecção, em primeira ou sequer em segunda linha, de um bem jurídico do autor, mas tão só um interesse simples, que, na situação concreta, será obviamente um interesse diferenciado e que terá de ser comprovado”, são os denominados, por Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, “ «interesses ocasionais diferenciados», como a vista que desfruto da minha janela ou a vantagem de estacionar na rua em frente da porta de minha casa.”, CPTA Anotado, Coimbra, Almedina, 2004., pág.365.
Não obstante, Aroso de Almeida menciona que, na verdade, só o carácter “pessoal” do interesse diz verdadeiramente respeito ao pressuposto processual da legitimidade, uma vez que se trata de exigir que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou declaração de nulidade do acto impugnado seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique para si próprio, de modo a poder afirmar-se que o impugnante é considerado parte legítima porque alega ser o titular do interesse em nome do qual se move no processo. Por outro lado, o carácter “directo” do interesse relaciona-se com a questão de saber se existe um interesse actual, no sentido de que existe uma situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório. Deste modo o que parece estar em causa é um outro pressuposto processual, o interesse processual ou interesse em agir [apesar de o CPTA, ao contrário do que sucede com o CPC alemão, não consagra em termos gerai o interesse em agir como pressuposto processual, apesar de conter um referência expressa a este requisito art.39º], importa, então, saber se o alegado titular do interesse (que, por isso, é parte legítima no processo) tem efectiva necessidade de tutela judiciária.
Importa, por ultimo, fazer uma breve referência à legitimidade para pedir a condenação à prática de actos devidos, art. 68º/1/a,, que ao contrário do que sucede no domínio da impugnação de actos administrativos (conforme salienta Aroso de Almeida, “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4ªedição, 2005, pág.44, parecendo estarmos aqui perante uma diferente noção de legitimidade face ao art.55/1/a), o CPTA não se basta com a invocação, pelo autor, da titularidade de um mero interesse directo e pessoal. A dedução do pedido de condenação da Administração à prática de um acto administrativo só está ao acesso de quem tenha direito ou, pelo menos um interesse legalmente protegido à emissão de um acto que foi ilegalmente recusado ou omitido. A legitimidade para pedir essa condenação pressupõe, portanto, a própria legitimidade para requerer a prática do acto, como claramente resulta do art.67º nº1, na base da dedução do pedido de condenação tem de estar a prévia apresentação de um requerimento que tenha constituído a Administração no dever de decidir e, portanto, a legitimidade do autor para apresentar esse requerimento, ou seja, só quem seja o requerente em procedimento administrativo pode depois instaurar uma acção destas. Resta também concluir, segundo Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, que este preceito, ao contrário do art.55/1/a, não confere legitimidade aos particulares que tenham um mero interesse de facto, nomeadamente, “interesses ocasionais diferenciados” supra referidos.
2, «Raio de Acção» da Acção Popular. (art.9º nº2; art.55º nº1, f,; art.68º nº1, d)
Antes de iniciar o comentário relativo à acção popular e ao seu regime no CPTA, importa destacar, no âmbito do observatório da realidade o caso relativo à Construção do Estabelecimento Prisional de Lisboa e Vale do Tejo em Almeirim:
“O estabelecimento prisional vai ser construído numa parcela da Herdade dos Gagos, uma mata com perto de 570 hectares propriedade da Junta de Freguesia de Fazendas de Almeirim, situada junto às povoações de Paço dos Negros e Marianos.
Respondendo à preocupação do Partido Ecologista "Os Verdes" quanto ao montado de sobro da propriedade, Bastos Martins afirmou que a parcela a ceder é a que tem menos sobreiros, não sendo possível saber quantos terão que ser abatidos antes de se conhecer a planta de implantação do edifício.
O presidente da junta afirmou que nos últimos anos tem sido desenvolvido um plano de desmatação e reflorestação da herdade, tendo sido já plantados 3000 sobreiros, estando mais 2000 previstos para o próximo ano. Esse programa tem incluído o abate de sobreiros doentes (mais de 1500), "certamente muito mais do que os que serão abatidos" para permitir a construção do estabelecimento prisional, afirmou.”
“Frisando que a Herdade dos Gagos tem 70 mil árvores instaladas (seis mil sobreiros adultos), com uma densidade de 135 sobreiros por hectare, muito superior à média nacional, Carlos Arraiolos apontou as "enormes potencialidades" económicas criadas pelo projecto e assegurou que a construção do EPLVT vai destruir o equilíbrio do ecossistema.”
“Entrou na sexta-feira, dia 14, uma acção administrativa especial no Tribunal Administrativo de Leiria para a anulação de todos os actos praticados com vista à instalação de um estabelecimento prisional na zona de Paço dos Negros e Marianos, concelho de Almeirim. A acção foi interposta pelo grupo de cidadãos para a defesa da ribeira de Muge, que pediu também a intervenção do primeiro-ministro, Presidente da República, provedor de justiça e comunicou a ainda a situação a todos os grupos parlamentares.
O grupo justifica a tomada de posição por verificar que o processo de instalação da cadeia, na herdade dos Gagos, propriedade da Junta de Freguesia de Fazendas de Almeirim, continua a desenvolver-se “em completo desprezo pela observância dos requisitos indispensáveis à preservação ambiental e paisagística envolvente”.
http://www.omirante.pt/noticia.asp?idEdicao=54&id=26280&idSeccao=479&Action=noticia
Seria ainda interessante chamar a atenção, dando especial ênfase ao tema legitimidade plural, para o Acórdão 05-08-2009 do STA relativo à apreciação de uma providência conservatória intentada por um grupo de cidadãos eleitores do concelho de Almeirim, ao abrigo do disposto nos artigos 112, n.° 2, als. a) e f), do CPTA, 9°, n.° 2, do CPTA, e 2°, da Lei n.° 83/95, de 31-08.
Link do Acórdão 05/08/2009:
Um segundo critério autónomo de legitimidade, encontra-se concretizado no art.9º nº2, relativo ao exercício da acção popular, uma legitimidade impessoal ou social destinada à defesa de interesses difusos ou interesses pessoais homogéneos a que se reporta o art. 52º nº3 da Constituição. Sendo também sujeitos activos no contencioso administrativo o actor público e o actor popular, afim de tutela da legalidade e do interesse público.
A acção popular nos termos da legislação portuguesa não constitui um meio processual per si, mas antes uma forma de alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos. Por não ser uma acção em sentido técnico, a acção popular comporta qualquer mecanismo útil para a prevenção, cessação ou perseguição judicial do interesse a que se destina. Teixeira de Sousa, “A legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos” Lisboa, Lex, 2003, defende por isso que a tutela dos interesses difusos pela acção popular dá-se de forma concreta e abstracta, uma vez que compreende qualquer meio de tutela admissível na área civil e administrativa.
Um passo inovador deste CPTA relaciona-se com o facto de conferir uma genérica capacidade de iniciativa processual ao Ministério Publico enquanto actor popular (atente-se ao facto de nos artigos 55/1/b e 68/1/c este vir diferenciado dos autores populares art. 55/1/f e 68/1/d). A atribuição desta nova função ao MP, poderá justificar-se pela conveniência de agilizar a tutela judiciária dos interesses difusos (pretendendo-se aproveitar a capacidade técnica e organizativa de um órgão do Estado com competências já definidas no domínio do contencioso objectivo, como defensor da legalidade democrática, art. 51 ETAF, para reforçar o controlo jurisdicional dos interesses difusos, partindo do pressuposto de que o interesse social ou supraindividual inerente ao exercício da acção popular é de algum modo equiparável ao interesse geral de legalidade de que o MP cabe especialmente defender), impõe a necessidade de uma compatibilização com o regime que decorre do art.16º da Lei nº 83/95, que atribui igualmente ao MP a representação processual do Estado e de outras entidades públicas quando estas forem intervenientes em causa. De acordo com o art.16º da referida Lei o MP poderá figurar como autor e réu e exercer ainda, num plano de equidistância em relação aos sujeitos processuais (atente-se ao nº3 art.16º, no caso de desistência do autor), o acompanhamento das acções em que não intervenha como parte, a que acresce agora, pelo art.9º nº2, a autonomia para exercer o direito acção popular segundo os seus próprios critérios de oportunidade. Se o eventual conflito de poderes poderá solucionar-se através do recurso aos mecanismos de substituição processual, não suscitando especial dificuldade, parece já excessivo que, ao menos no domínio da acção popular administrativa, em que frequentemente a agressão ao interesse difuso é imputável à Administração, caiba ao MP o exercício da acção popular e, simultaneamente, em representação processual, a defesa dos interesses contrapostos.
A Constituição configurou a acção popular como uma forma de legitimidade processual activa dos cidadãos, que poderá ser exercitada perante qualquer tribunal, individualmente ou por intermédio de associações representativas, independentemente do interesse pessoal ou da sua relação específica aos bens ou interesses difusos que estiverem em causa. Com efeito, estamos perante uma vertente objectivista do nosso sistema de justiça administrativa, permitindo-se que certas pessoas e organizações, independentemente de qualquer lesão específica da sua esfera jurídica, assumam a defesa ou “representação” judicial dos interesses gerais da colectividade no legal e regular desempenho da actividade administrativa, quando estejam em causa esses bens e valores legais e constitucionalmente protegidos. A “lei” para efeitos do art.9º nº2 é desde logo, a Lei nº83/95 (Lei da Acção Popular) mas também, a título exemplificativo, os arts. 40º, 41º, 42º, 44º da Lei nº 11/87 (Lei Bases do Ambiente), art. 10º da Lei nº 35/98 (Lei sobre as Organizações Não Governamentais do Ambiente), art.13º da Lei nº 24/96 (Lei de Defesa dos Consumidores).
Com a protecção judicial dos interesses difusos alarga-se o universo das pessoas com legitimidade activa no processo administrativo, dispensando-se em relação a elas, nestas matérias, a exigência de um interesse pessoal na instauração do processo judicial. Deste modo não é necessário que a esfera jurídica das pessoas ou entidades referidas seja afectada por uma actuação administrativa para que elas possam pedir o julgamento da administração em tribunal administrativo. Aqui surge a particularidade do interesse difuso: a protecção constitucional reconhecida a certos valores e bens tem em vista não só a sua tutela jurídica como valor em si, essencialmente comunitário, mas também a sua tutela como valor pessoal e próprio de cada um dos membros da comunidade. A acção popular desempenha assim um meio processual que favorece a participação dos cidadãos na vida democrática.
Contudo, tal como saliente Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, é duvidoso, se basta a presença de um bem ou valor constitucionalmente protegido para efeitos de legitimação popular ou se é necessária qualquer coisa mais: é duvidoso, por exemplo, se um cidadão de Viana do Castelo, no noroeste do país, possa instaurar, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, uma acção destinada a evitar a construção de uma ponte ambientalmente pouco sã em Castro Marim, no sudeste de Portugal, sem apresentar qualquer ligação mais ou menos duradoura ou relevante com esse local? Será necessário exigir que o mesmo particular seja membro da comunidade atingida pela lesão ou pela ameaça de lesão ao interesse difuso em causa? (Tal posição é defendida entre nós por Marques Antunes, “O Direito de Acção Popular no Contencioso Administrativo Português”, Lisboa, Lex, 1997. Posição esta que não deixa de ser questionável, uma vez que o direito à acção popular, por ser um dos direitos, liberdades e garantias só pode ser limitado por uma lei geral, abstracta e não retroactiva, sendo que qualquer outra forma, não prevista na lei, seria ilegítima. Como ultrapassar a exigência constitucional prevista no art.18º/3º CRP, em sede de restrições expressamente autorizadas a direitos fundamentais?)
A causa de pedir, o direito invocado em favor da pretensão do autor, a procedência desta em juízo, não pode resumir-se à mera indicação da norma jurídico-constitucional de tutela do interesse supostamente lesado, como se isso fosse bastante para conceder provimento ao pedido formulado. Por exemplo: a construção de uma estrada ou de uma ponte pode bulir com o direito ou interesse a um ambiente sadio nos locais afectados, mas não é por isso que o tribunal vai anular o acto ou o contrato administrativo onde essa construção vai ser prevista. Uma decisão municipal pode ser deficiente do ponto de vista do correcto ordenamento do território, mas isso não justifica nem fundamenta a sua invalidade. Para tanto é necessário que o autor invoque uma causa de ilegalidade, nomeadamente a violação das normas jurídicas ditadas em concretização do preceito constitucional em causa. (note-se que em certos casos até pode acontecer que a norma constitucional, exequível por si mesma, sirva logo como fundamento do pedido de invalidação das medidas administrativas que a ofendam. Mas em regra não é isso que sucede! [Basta ver que as normas constitucionais onde se encontram plasmados os bens e valores referidos, a título exemplificativo, no art.9º nº2 são normas que consagram os, já estudados, em Direitos Fundamentais, “Direitos Sociais”, dependentes, segundo Jorge Reis Novais, da “reserva do financeiramente possível”, ou de acordo com a doutrina maioritária de “imediata eficácia dispositiva”, isto é, carecem de um conteúdo suficientemente densificado (apesar de também alguns Direitos de Liberdade não terem um conteúdo suficientemente densificado… Veja-se o direito à identidade genética art.26/3 CRP! Contudo não importa aqui discutir se se justifica ou não a existência de um regime específico dos Direitos de Liberdade ou se seria preferível a defesa de um dogmática unitária dos direitos fundamentais…), não fornecendo ao juiz uma suficiente base heterónoma e objectiva de decisão, estando, por conseguinte, dependentes de uma ulterior intervenção legislativa, concretizadora e conformadora do seu conteúdo.])
É importante ainda apurar o que acontece quando a conduta do “actor popular” conflitue com os interesses daqueles que, por terem legitimidade pessoal para o efeito, também accionaram a Administração em relação às medidas (ambientais, urbanísticas, etc) que os afectaram individualmente, mas como o direito de acção de ambos tem a mesma valia, não há nesse potencial conflito de interesses qualquer sobreposição de um deles ao outro, cada um exerce livremente o seu direito, nos limites da lei. O que poderá existir é a hipótese de coligação ou apensação de acções.
Outra questão é a de saber se os interessados pessoais (ou seja, aqueles em quais se repercute na sua esfera jurídica a lesão proveniente de um acto administrativo) num acto da administração que bula também com bens constitucionalmente protegidos, com esses interesses difusos, podem impugná-lo ao abrigo da legitimidade reconhecida pelo art.9º nº2 ou 55/1/f e segundo o regime instituído na Lei 83/95 (uma vez que são dotadas de legitimidade activa qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, nos termos do art.2º/1 da referida Lei 83/95), apesar de poderem (ou deverem?) intentar uma acção particular nos termos da 55/1/a ou 9/1º? Até que ponto esta opção pela acção popular, não padecerá de abuso de direito no acesso à justiça administrativa, nomeadamente pela escolha abusiva do meio processual, acção popular? Atente-se ao art. 20º da Lei 83/95 e ao facto de estarem isentos do pagamento prévio da taxa de justiça inicial ou subsequente. Atente-se ainda à especialidade de regime da referida Lei, arts 17 e 18.
Relativamente ao art.55/2, a denominada acção popular de âmbito autárquico, importa perguntar, segundo Vasco Pereira da Silva, se ainda se justifica manter tal dualidade de regimes. Afirmando, que esta modalidade de acção popular fora absorvida pela previsão genérica da acção popular (55/1/f), de maior amplitude e susceptível de tutelar os mesmos bens, por conseguinte esta acção popular “correctiva” caducou, em face da acção popular genérica, uma vez que esta ultima goza de requisitos de admissibilidade mais amplos e que forçosamente absorvem os anteriores. Com efeito, a expressão “bens e valores constitucionalmente protegidos” é suficientemente ampla para abarcar também os “bens e valores autárquicos”, abrangendo toda e qualquer decisão administrativa, inclusive as “decisões de órgãos autárquicos”.
Por último, importa fazer um breve comentário à acção popular no âmbito da condenação da administração à prática do acto devido, mormente artigo 68º/1/d, cuja recusa ou omissão ponha em causa os valores referidos no art.9º nº2. Não deixa de parecer estranho, face a um instituto de cunho acentuadamente “subjectivista”, nascido para a defesa dos direitos dos particulares nas relações de prestação típicas da moderna Administração Prestadora e Infra-estrutural, o legislador ter introduzindo uma componente “objectivista” e por conseguinte ter procedido a um “alargamento” para a apresentação de pedidos de condenação também no que respeita à defesa da legalidade (MP - art.68/1/c) e à defesa do interesse publica e de interesses difusos (Acção popular - art.68/1/d). Não obstante, figura-se ainda mais estranho, não as limitações (bem, mas não de forma suficiente) introduzidas no âmbito da legitimidade do actor público, art.68/1/c, mas o facto de, no art.68/1/d, o legislador não colocar qualquer tipo de condicionamento à legitimidade do actor popular!
Explicando:
Como supra referido no texto, este instituto é marcadamente subjectivista, inclusive, este preceito legal deve ser conjugado com o art.67 CPTA, que pressupõe, regra geral, a apresentação se um requerimento dirigido à Administração, “provocando-a” à prática do certo acto administrativo, e, por conseguinte, só quem o tenha feito pode depois instaurar uma acção destas. Deste modo importa concluir, que contra ou sem a vontade do requerente ninguém pode ir a tribunal pedir que a Administração seja condenada a deferir algo que ela indeferiu – pois só ele, requerente, sabe e decide se se conforma com o silêncio ou com o indeferimento de que foi destinatário ou se, pelo contrário, ainda mantém interesse no reconhecimento judicial da legalidade da pretensão que formulou e se pretende reagir contra a sua recusa ou omissão. Nem sequer o MP pode sobrepor-se a essa imprescindível necessidade de intervenção do requerente na decisão de propositada de uma acção de condenação à prática do acto devido (excepto nos casos em que a decisão da prática do acto pela Administração resulta directamente da lei, ou estejam em causa interesses públicos particularmente relevantes).
Cumpre, então, averiguar se é justificada a respectiva opção legislativa (art.68/1/c parte final, e especialmente a ampla remissão do art.68/1/d), e particularmente, se não existirá uma contradição entre a natureza e função do instituto e as normas atributivas de legitimidade. Ora, enquanto a alínea c, nº1, art.68, condiciona a intervenção do MP a determinados limites, relativos à natureza dos interesses públicos em jogo, já a alínea d, nº1, art.68 parece não colocar qualquer condicionamento à legitimidade do actor popular. Deste modo, tal como refere Vasco Pereira da Silva, não faz qualquer sentido que a intervenção do MP, enquanto órgão do Estado destinado à defesa da legalidade e do interesse publico, esteja sujeito a determinadas condições, em razão da importância dos interesses em jogo, condições, essas, que já não valem quando se trate da legitimidade do actor popular. Importa unificar as condições de tutela objectiva da legalidade e do interesse público, estendendo ao actor popular as limitações que o legislador consagrou para a acção pública.
Em suma, tanto a remissão feita no 68/1/c parte final, “qualquer dos bens referidos no nº2 do art.9º” (sem qualquer tipo de restrição) como a remissão do art.68/1/d, configuram-se manifestamente inadequadas, carecendo tais preceitos, tal como salienta Vasco Pereira da Silva, de uma interpretação correctiva.
Ana Catarina Matos, Nº16450, Subturma 8
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