I. Definição de Recurso Hierárquico O recurso hierárquico é um meio de impugnação de actos administrativos praticados por um órgão subalterno perante o seu superior hierárquico, com o objectivo de que este proceda à sua revogação ou substituição.
Para o Professor Marcello Caetano, para que fosse possível intentar um recurso hierárquico bastaria que o órgão que praticou o acto estivesse sujeito, meramente, ao poder de superintendência de um outro órgão, que teria então a competência para revogar ou substituir o acto por aquele praticado.
Esta seria uma definição que pecaria por defeito já que, como refere o Professor Freitas do Amaral, essencial seria a existência de uma relação hierárquica (que se consubstancia na existência de poder de direcção, superintendência e disciplinar).
O recurso hierárquico seria, assim, aquele meio de impugnação de um acto administrativo praticado por um órgão subalterno (portanto, inserido numa relação hierárquica) perante o órgão superior, pretendendo-se a revogação ou substituição do acto do subalterno.
Distingue-se, assim, o recurso hierárquico da acção judicial de impugnação (correspondente, em moldes muito pouco similares, ao antigo recurso de anulação), por aquele situar-se dentro da própria Administração Pública, sendo decidido pelos seus órgãos, enquanto este será decidido nos tribunais.
É, ainda, controversa a questão de saber se pode ser objecto de recurso hierárquico o acto praticado por órgão subalterno ao abrigo de competência exclusiva. Existem, na doutrina, três posições diferentes.
Segundo o entendimento do Professor Marcello Caetano, mesmo que o acto fosse da competência exclusiva do subalterno, haveria a possibilidade de se recorrer ao recurso hierárquico. Este teria, porém, a característica de o órgão superior não poder revogar ou substituir os actos do subalterno (já que não tem competência para tal), estando apenas em posição de emitir uma ordem ao subalterno para que este revogue ou modifique o acto recorrido.
Por seu lado, José Robin de Andrade admmite, sem restrições, a possibilidade de o superior revogar os actos praticados nas referidas condições.
Em sentido claramente oposto, os Professores Afonso Queiró e Freitas do Amaral parecem propender para a inadmissibilidade de recurso hierárquico nas situações em que o acto foi praticado ao abrigo de competência exclusiva, já que nestes casos não existe o poder de supervisão.
II. Modalidades de Recurso Hierárquico
Da perspectiva dos fundamentos subjacentes à impugnação do acto, o recuros hierárquico pode classificar-se como de legalidade, mérito ou misto.
Será interposto recurso de legalidade quando for arguida a ilegalidade do acto, ou seja, a sua desconformidade com a lei; em tom inverso, será, pois, de mérito quando o acto, embora conforme à lei, não atende a (no entendimento do particular) critérios de justiça e oportuidade relevantes; o recurso misto terá como fundamento, então, a súmula dos primeiros dois tipos.
Pode ainda estabelecer-se uma classificação dos recursos consoante a sua relação com a acção judicial. O recurso será necessário quando a sua instauração for condição indispensável (consubstanciando-se num verdadeiro pressuposto processual) para se recorrer aos tribunais administrativos. Diz-se, porém, facultativo quando o particular tenha o direito de impugnar hierarquicamente o acto, não sendo porém este facto pressuposto do imediato acesso aos tribunais; aqui não se exige, pois, a definitividade vertical do acto.
Podem, ainda, pensar-se em hipóteses de recurso hierárquico alternativo, em que o particular tem o direito de, por um lado, recorrer aos tribunais administrativos e, por outro, instaurar recurso hierárquico, sendo que a opção por uma destas hipóteses preclude o recurso à outra; ou recurso hierárquico exclusivo, em que este seria o único meio impugnatório ao alcance do particular.
III. Questões de Constitucionalidade
Cumpre dizer, desde já, que as duas últimas modalidades de recurso hierárquico (alternativo e exclusivo) são incontestavelmente inconstitucionais.
O recurso hierárquico exclusivo, no sentido em que veda claramente todo e qualquer acesso a meios contenciosos de impugnação de actos lesivos aos particulares, contende frontalmente com o artº 268/4 CRP.
Já, por seu turno, o recuros hierárquico alternativo se se podia dizer que, numa interpretação restritiva do artº 268/4 CRP, não seria inconstitucional porque, em abstracto, fora facultado o acesso aos tribunais administrativos, a verdade é que permitiria uma renúncia ao direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no artº 20º CRP (no caso de o particular decidir recorrer ao recurso hierárquico, precludindo a hipótese de acesso a meios contenciosos), renúncia essa que não deve ser em caso algum aceite, por se tratar (em meu entender, e por ser este direito um dos mais importantes e em que se baseia o Estado de Direito) de um direito irrenunciável; sendo assim, estará, também ele, ferido de inconstitucionalidade.
O recurso hierárquico facultativo será, porventura, o que menos dúvidas oferece: de facto, não impondo limitações ou restrições de qualquer ordem no acesso aos tribunais administrativos, não contende com qualquer preceito constitucional.
Por último, cabe analisar o recurso hierárquico necessário (doravante, devido à frequência com que se usará este expressão, passarei denominá-lo simplesmente de r.h.n.), aquele sore o qual mais doutrina se tem pronunciado.
Vasco Pereira da Silva considera que, desde a ateração de 1989 à CRP (que, alterando o nº4 do artº 268, deixou de exigir a definitividade vertical do acto como pressuposto de recurso ao meio contencioso, bastando agora a existência da lesividade), e ainda antes da reforma do CPTA, que todo e qualquer r.h.n. estaria ferido de inconstitucionalidade. Tal vício adviria da violação dos princípios constitucionais da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (artº 268/4 CRP), entendendo que a exigência de r.h.n. equivale a uma negação do direito fundamental de acesso à justiça; da separação de poderes entre a Administração e a Justiça (artºs 205º ss e 266ºss CRP), «por fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da não-utilização de uma garantia administrativa»; da desconcentração administrativa (artº 267/2 CRP), que obrigaria a recurso directo aos tribunais pelo acto lesivo do subalterno; e da efectividade de tutela (268/4 CRP), «em razão do efeito preclusivo de impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não haver interposição prévia de recurso hierárquico, no prazo de 30 dias (artº 168/2 CPA), reduzindo assim drasticamente o prazo de impugnação de actos administrativos, o qual, por ser manifestamente curto, poderia equivaler, na prática, à inutilização de possibilidade de exercício do direito e, como tal, susceptível de ser equiparado à lesão do próprio conteúdo essencial do direito». Partidário desta tese mostra-se, também, o Professor Paulo Otero.
Um outro sector da doutrina, no qual se encontram Rogério Ehrhardt Soares e Vieira de Andrade, não consideram que exista qualquer inconstitucionalidade nos casos de impugnação administrativa obrigatória por violação do artº 268/4 CRP. Segundo o entendimento destes autores, o artº 268/4 CRP apenas obriga a que não se exclua em caso algum o acesso a meios contenciosos em caso de lesão originada por acto administrativo. Ora, o mesmo 268/4 CRP não parece excluir o condicionamento de acesso aos tribunais com a exigência de r.h.n., já que esse acesso acaba por ser sempre possível; e lembrava ainda que o artº 18/2 CRP permite limitações ou condicionamentos a direitos fundamentais, desde que não sejam arbitrátrios, situação em que haveria já incontitucionalidade. O Professor Vieira de Andrade conclui o seu pensamento dizendo, ainda, que os casos de necessidade de interposição de recurso hierárquico se justificariam à luz do princípio da unidade da acção administrativa (artº 267/2 e 199ç, alínea d) CRP) e da economia processual no contencioso administrativo.
Tomando posição nesta querela, parece-me realmente mais acertada a defesa da não-inconstitucionalidade do r.h.n. Entendo, pois, que a eliminação, em 1989, dos requisitos de definitividade e executoriedade dos actos, e a subsequente implantação do critério de lesividade dos actos não significa, só por si, a abertura de um recurso contencioso imediato. O legislador ordinário estará, assim, na posição de decidir como pretende organizar o recurso aos meios contenciosos; parece-me, porém, que este será um juízo que não deve fazer-se por completo, em abstracto: a análise da proibição de arbitrariedade consagrada no artº 18/2 e 3 CRP deve ser feita caso a caso.
Quanto aos argumentos do Professor Vasco Pereira da Silva, com o devido respeito, não me parecem proceder: como referi, há uma limitação (constitucionalmente permitida) ao direito de acesso à justiça, não uma negação desse mesmo direito; o princípio da separação de poderes continua a estar respeitado, pois que existe a possibilidade de recurso a meios contenciosos - o que se exige, primeiro, é a tentativa de resolução do litígio de forma, dir-se-ia, graciosa; o princípio da desconcentração administrativa também se encontra respeitado pois as competências são distribuídas por diferentes órgãos, acontecendo muitas vezes que o superior só toma conhecimento do acto lesivo pela interposição do próprio recurso hierárquico; por fim, a efectividade da tutela será o que levanta mais problemas, mas não me parece que se possa dizer que deixe de haver uma tutela efectiva (mesmo com a redução de prazos). Admito, porém, que numa lógica de análise casuística, como defendi, haja casos em que este preceito possa estar a ser comprimido de forma constituicionalmente inaceitável.
Respondendo, por fim, à questão que o Professor Paulo Otero colocou aos defensores da tese da não-inconstitucionalidade do r.h.n., que seria a de saber qual tinha sido, então, a utilidade prática da alteração constitucional, entendo que o seu mérito foi o de atribuir margem de livre decisão ao legislador ordinário para decidir, nos casos em que os actos administrativos sejam lesivos, em que situações especifícas a instauração de recurso hierárquico fosse necessária ou meramente facultativa.
IV. O Regime Consagrado no CPTA
É opinião maioritária na doutrina que a Reforma do CPTA veio estabelecer, como regra geral, o recurso hierárquico alternativo. De facto, parece resultar do artº 51/1 CPTA que o critério de impugnabilidade contenciosa dos actos será, apenas, a sua lesividade; o artº 59/4 CPTA estabelece a suspensão dos prazos para impugnação contenciosa quando seja intentado recurso administrativo e o artº 59/5 prevê especificamente a hipótese de recorrer aos tribunais administrativos mesmo durante a pendência de impugnação graciosa.
Daqui, retira o Professor Vasco Pereira da Silva que será este o meio de impugnação para todos os actos administrativos, pois que as disposições que constituam o r.h.n., para além de ser já inscontitucionais, teriam sido revogadas.
Porém, como refere o Professor Mário Aroso de Almeida, essa será apenas a regra geral do Contencioso Administrativo, mantendo-se em vigor disposições avulsas que imponham r.h.n., pois que o novo regime não implicaria a revogação das «múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se [considerassem] extintas».
Mais uma vez, com o devido respeito pela sua douta opinião, vejo-me a discordar com o Professor Vasco Pereira da Silva: de facto, tratando-se essas leis avulsas de leis especiais, e tendo sido revogado (e "substituído") o regime geral, não vejo como possa ter havido uma revogação tácita de tais preceitos. E não se diga que essa legislação avulsa não estaria numa posição de especialidade relativamente ao regime geral então vigente: a expressa consagração noutro diploma que não o geral, mostra que a ratio subjacente a essa opção seria diferente, o que poderia conduzir a diferenças de regime a que se chegasse, por exemplo, através de uma interpretação sistemática ou teleológica.
Concordo, portanto, com o Professor Mário Aroso de Almeida, quando diz que esses preceitos se mantêm em vigor, como excepção à regra geral, por vontade do legislador que, tendo em conta o "panorama específico" daquela situação, entendeu ser aquela a melhor opção.
Cabe, por fim, saber se nos casos de exigência de r.h.n. (e abstraindo, agora, da polémica sobre a inconstitucionalidade e/ou revogação da legislação avulsa), para que se instaure acção judicial, é ou não exigido que se espere pela decisão que resulta do procedimento de impugnação administrativa.
Entendendo esta exigência (como parece ser consensual na doutrina) como um pressuposto processual, a Dra Dinamene de Freitas considera que basta a instauração do recurso hierárquico, não sendo necessário esperar pela decisão, já que a sua finalidade seria apenas a de dar conhecimento do acto lesivo ao seu superior.
Tenho para mim que, tendo sido opção do legislador a necessidade de interposição do recurso hierárquico, é pois exigido que se aguarde pelo final do processo.
Irei, então, esgrimir os meus argumentos por pontos, se mo permitirem, para uma maior clareza na explicação:
- Primeiro que tudo, por razões de economia processual do Contencioso (e para evitar mais gastos desnecessários na Administração Pública),: a entender-se que bastava a instauração do recurso hierárquico, sem mais, abria-se a porta a que o recurso a este meio de impugnação fosse feito de modo quase "displicente", sem se recorrer a todos os fundamentos possíveis, procurando apenas com isso ganhar tempo para que, quando se aceda aos tribunais, se possa fazê-lo melhor preparado: para isso gastam-se recursos da Administração Pública em "vão" mercê de uma estratégia processual que só seria permitida para aquela interpretação mais lata da lei, contribuindo-se, assim, para mais um caso de burocracia inútil.
- Contra este entendimento, poder-se-ia também dizer que o acto impugnado é o acto do subalterno e não o acto de deferimento/indeferimento do superior; estou completamente de acordo, mas, convém não esquecer que o r.h.n. pode resultar numa alteração favorável do acto para o particular - estar-se-ia, assim, a recorrer aos tribunais como uma forma de resolução de litígios que não em ultima ratio (parecendo-me ser assim o modo mais adequado, e até desejável, de proceder; e, como noutras áreas de procedimento dos tribunais, procuram-se sempre outras vias "graciosas" para resolução do litígio, como a mediação, por exemplo).
Como refere o Professor Mário Aroso de Almeida, «o sistema de justiça deve estar disponível para dar resposta a situações de necessidade de tutela judicial que se concretizem num interesse em agir em juízo.» Ora, parece-me que, sendo instaurado o r.h.n. e não se esperando pelo resultado da sua decisão, não há interesse em agir. Pode arguir-se que isto só se verificava caso houvesse uma decisão de deferimento por parte da Administração Pública, em que ocorreria inutilidade superveniente da lide; considero, porém, que não haveria interesse em agir desde o início do processo porque a verdade é que, quando se instaura a acção, como foi também instaurado recurso, e não há ainda decisão definitiva, não se pode falar em necessidade de tutela judicial.
- Por fim, poderia ainda ser alegado contra a posição que defendo que tal sistema não seria compatível com o artº 59/4 e 5 CPTA (que cominam, respectivamente, que a utilização de meios de impugnação administrativa suspende o prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo e que esta suspensão do prazo não impede o particular de proceder á impugnação contenciosa do acto ainda na pendência da impugnação administrativa).
Pois bem, quer me parecer que estas disposições não serão aplicáveis aos casos de r.h.n.. Como referi, estas situações estão previstas em legislação especial avulsa, o que significa que terão um regime (ou parte dele) diferente do regime geral; sendo pois aquelas normas partes integrantes do regime geral, e sabendo que lei geral não derroga lei especial, considero-as não aplicáveis aos casos de impugnação administrativa necessária.
Sendo assim, se nos recursos facultativos não é exigido que se obtenha a decisão do órgão superior, tal já será exigido (porque assim o entendeu, naquele caso específico, o legislador) nos casos de r.h.n..
E não se diga que desta forma se desprotege o particular: se no regime do artº 59/4 CPTA (e, portanto, do recurso facultativo), o efeito suspensivo é só sobre o prazo para impugnação contenciosa, nos casos de recurso necessário (como refere o Professor Vasco Pereira da Silva, na página 352 do seu manual O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise) há efeito suspensivo da própria execução da decisão administrativa.
Dinis Tracana, nº 16584, subturma 8
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