1) Entidades privadas com poderes administrativos e jurisdição administrativa – o exemplo da Federação Portuguesa de Futebol (FPF);
2) Competência;
3) Legitimidade.
) Federação Portuguesa de Futebol e jurisdição administrativa
A FPF é uma associação de Direito Privado que até muito recentemente exerceu poderes públicos. Actualmente o seu estatuto de utilidade pública encontra-se suspenso desde 19 de Março, estando já em curso uma providência cautelar e uma acção de nulidade da decisão da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, da autoria de associações regionais e distritais de futebol. Perante o desenrolar da situação real e considerando o interesse académico em introduzir no caso prático a actuação de uma entidade privada no exercício de poderes públicos, ficcionar-se-á a manutenção do estatuto de utilidade pública. Este estatuto é atribuído a federações desportivas (1º, 2º e 10º DL 248-B/2008, 31/12, Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto [LBAFD]), mediante critérios e procedimento específicos (15º ss LBAFD), dotando-as de poderes de natureza pública no âmbito da regulamentação e disciplina das competições desportivas (10º e 11º LBAFD). Sobre a consideração da FPF como pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública, ver por exemplo o acórdão STA 074/02, de 15/12/2004.
Uma associação de Direito Privado com poderes públicos é uma entidade particular que integra a Administração Pública (AP) no sentido funcional pelo facto de: 1) exercer funções ou tarefas administrativas de uma forma que denuncia a apropriação pública das mesmas; e 2) estar especificamente regulada por normas de Direito Administrativo (DA). Este tipo de entidades deve distinguir-se das entidades administrativas privadas, organismos privados sob domínio público criados através de uma privatização orgânica formal e que pautam geralmente a sua actuação pelo chamado Direito Privado Administrativo (Direito Privado conformado por princípios constitucionais e legais de DA e por uma maior protecção dos direitos fundamentais), só excepcionalmente estando directamente sujeitas ao DA (nos casos em que actuem externamente, na qualidade de membros da Administração).
Sendo entidades privadas, só excepcionalmente se encontram sujeitas à jurisdição administrativa, por efeito do exercício de poderes públicos de autoridade (4º/1 d) ETAF), de cláusula geral delimitativa do âmbito da jurisdição administrativa (212º/3 CRP e 1º/1 ETAF) ou por disposições legislativas especiais. É através deste último critério que se submetem certos actos da FPF à jurisdição administrativa, uma vez que o 12º LBAFD permite que os actos de poder público praticados pelas federações desportivas dotadas de utilidade pública sejam objecto de recurso para os tribunais administrativos (sobre o recurso aos tribunais administrativos para a impugnação contenciosa de actos das federações desportivas vide, a título exemplificativo, os acórdãos STA 077733, 18/04/1991 e STA 0739/07, de 06/11/2007. De notar aqui que o facto de a FPF ser dotada do estatuto de utilidade pública não faz com que todos os actos dos seus órgãos sejam impugnáveis nos tribunais administrativos. Efectivamente, há que distinguir 3 esferas da acção federativa:
a) A esfera do Direito Privado – actuação da FPF no âmbito do Direito do Trabalho, do Direito das Obrigações, etc., como qualquer outra associação privada. A resolução de litígios é realizada nos tribunais judiciais.
b) A esfera do Direito Público – exercício de poderes de regulação pública, tal como entendidos pelo 10º e 11º LBAFD e 22º L. 30/2004, 21/07 – Lei de Bases do desporto (LBD). O exercício destes poderes da federação sobre os regulados (entidades referidas no 2º LBAFD e 3º/1 L. 112/99, 3/08 [Regime Disciplinar das Federações Desportivas]) processa-se de forma autoritária, surgindo os regulados como “administrados” face à federação. Donde, as decisões e deliberações das federações desportivas no âmbito do exercício de prerrogativas de autoridade concedidas pelo Estado são em regra justiciáveis nos tribunais administrativos (12º LBAFD e 47º/3 LBD).
c) A esfera desportiva – relativa à regulação técnica do jogo (ex: “a vitória vale 3 pontos”) e às regras disciplinares sancionatórias do desrespeito pelas “leis do jogo” (faltas). Não tem carácter jurídico, pelo que os tribunais estatais não são competentes para resolver litígios emergentes nesta esfera de acção das federações (47º/1 e /2 LBD). Sobre o conceito de “questão estritamente desportiva”, vide o acórdão STA 0120/08, de 10/07/2008.
No presente caso prático, a Comissão Disciplinar da FPF aplicou uma sanção de descida de divisão ao Clube F.C. Axadrezados. Caso real semelhante se passou com o Boavista, pelo que se irá aqui ficcionar que o motivo para a sanção foi o mesmo, ou seja, em resultado de processo judicial relativo a corrupção e tráfico de influências no futebol português (“Apito Dourado”). Este é claramente um acto fora do poder privado de auto-regulação da FPF, integrando a sanção um poder disciplinar que implica o uso de prerrogativas de autoridade no âmbito da punição de comportamentos que pervertem o fenómeno desportivo e são portanto contrários à ética desportiva (1º/1 e /2 RDFD e 47º/3 LBF). Donde, a decisão do órgão da FPF é impugnável nos tribunais administrativos (12º LBAFD e 47º/1 e /3 LBD).
Relativamente à impugnação da decisão pelos jogadores do clube, a competência dos tribunais administrativos verifica-se à luz do 4º/1 d) ETAF. Tratando-se de impugnação de um acto administrativo, a acção administrativa segue a forma especial, de acordo com o 46º/2 a) CPTA e nos trâmites do 50º ss CPTA. Sendo a FPF entidade privada em actuação ao abrigo de normas de DA, é ainda aplicável o 51º/2 in fine CPTA, que determina a impugnabilidade do acto em causa.
Já quanto à reacção judicial dos patrocinadores, que combina a impugnação do acto administrativo e o pedido indemnizatório (4º/1 d) e i) ETAF e 1º/5 L. 67/2007, 31/12 [Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas]), está-se perante uma cumulação de pedidos (4º/1 a), /2 a) e f) e 47º/1 CPTA). Separadamente, o pedido de impugnação do acto seguiria a acção administrativa especial (46º/2 a), 50º ss e 51º/2 CPTA), enquanto o pedido de indemnização seguiria a acção comum (37º/2 f) CPTA). Todavia, tratando-se de uma cumulação de pedidos correspondentes a formas de processo diferentes, o processo segue a forma especial (5º/1 e 47º/1 CPTA).
1) Competência
Em razão da matéria, não cabendo no processo no âmbito da competência reservada do Supremo Tribunal Administrativo (24º/1 ETAF) nem dos Tribunais Centrais Administrativos (37º ETAF), o julgamento da causa pertence aos Tribunais Administrativos de Círculo (TAC’s), que possuem competência residual (44º/1 CPTA).
Em razão do território, a competência para a acção intentada pelos jogadores é aferida pela regra geral do 16º CPTA, uma vez que a causa não se integra em nenhuma das excepções dos arts 17º a 21º CPTA. Para a acção intentada pelos patrocinadores, a norma a aplicar é a constante do 18º/2 CPTA, uma vez que a indemnização é requerida na sequência da impugnação de um acto administrativo emitido por um órgão da FPF; o 18º/2 CPTA remete-nos para o tribunal da residência habitual da maioria dos autores, uma vez que o tribunal competente para apreciar a validade da emissão do acto administrativo é aferido com base no 16º CPTA. Não apresentando o caso prático dados suficientes para a completa resolução da questão da territorialidade, resta mencionar que a determinação do TAC concretamente competente se realiza recorrendo ao DL 325/2003, 29/12, alterado pelo DL 182/2007, 9/05.
2) Legitimidade
a) Segundo a regra geral da legitimidade passiva (9º/1 CPTA), podem intentar uma acção administrativa as entidades implicadas na relação material controvertida, ou seja, na relação jurídico-administrativa (212º/3 CRP e 1º/1 ETAF). Da aplicação exclusiva da norma em questão resultaria que apenas o próprio clube de futebol teria legitimidade processual no âmbito do contencioso administrativo. Contudo, uma vez que a acção segue a forma especial, há que ter em consideração o regime específico de legitimidade para a impugnação de actos administrativos (55º CPTA), que repete parcialmente o 9º CPTA, mas alarga consideravelmente o leque de pessoas que podem recorrer aos tribunais administrativos, no âmbito desta matéria. Sobre a impugnação de deliberações de órgãos da FPF pelos clubes de futebol, sugere-se a leitura do acórdão STA 0005488, de 05/12/1989.
Os jogadores do clube, enquanto particulares, não têm de ser titulares de um direito subjectivo (e não o são) para impugnar o acto, bastando que tenham um interesse directo e pessoal na invalidação do mesmo (55º/1 a) CPTA). De notar que o interesse directo se reconduz aqui à noção de interesse processual (ou seja, ao interesse em obter a tutela jurisdicional requerida através do meio processual escolhido, de acordo com a definição de Teixeira de Sousa), enquanto o interesse pessoal é referente à legitimidade proprio sensu (titularidade do interesse em nome do qual é impugnado o acto). Tendo em conta que a descida de divisão pode levar à perda de contratos publicitários, ao menor interesse dos adeptos no clube e até à redução dos salários dos jogadores (14º/2 L. 28/98, 26/06 – Contrato de trabalho desportivo), o interesse destes é não serem ilegalmente prejudicados pelo acto lesivo passível de afectar a posição jurídica de vantagem que mantêm pela permanência na 1ª Liga. Por aqui se constata a amplíssima legitimidade consagrada pelo 55º/1 a) CPTA, permitindo que sejam parte na acção administrativa não só os titulares de direitos subjectivos no sentido clássico do termo, mas também os titulares de interesses legítimos ou difusos a quem a invalidação judicial do acto traga uma vantagem imediata e própria.
No que aos patrocinadores diz respeito, é também invocável o 55º/1 a) CPTA para aferição da sua legitimidade activa. Em moldes semelhantes, estão directa e pessoalmente interessados em não serem ilegalmente prejudicados pelo acto; neste caso, a descida de divisão pode implicar para o patrocinador a necessidade de rescisão dos contratos de patrocínio, ou afectar a sua imagem junto do mercado publicitário.
b) Relativamente ao Ministério Público (MP), este pode impugnar o acto praticado pela Comissão Disciplinar enquanto titular da acção pública (55º/1 b) CPTA e 51º ETAF), intervindo no processo como parte principal. Não parece que a legitimidade do MP se deva aferir por via do 55º/1 f) CPTA, uma vez que está já contemplada no 55º/1 b) em extensão ilimitada para a matéria de impugnação de actos administrativos; a admissão da aferição da legitimidade do MP por via do 55º/1 f) CPTA implicaria a limitação da mesma aos interesses comunitários referidos no 9º/2 CPTA, em virtude da remissão legal e, portanto, uma duplicação da regra de legitimidade sem qualquer vantagem. O MP pode ainda intervir como parte acessória especial (334º CPC) enquanto amicus curiae, entidade imparcial defensora de direitos fundamentais, bens constitucionalmente protegidos e interesses públicos ou comunitários relevantes. A opção por um ou outro tipo de intervenção é uma questão de estratégia processual, sendo que se optar pela via da parte acessória os seus poderes processuais serão mais limitados e a sua posição processual subordinada à da parte principal da demanda.
c) Claque
A legitimidade processual da claque é analisada no quadro do 55º/1 f) CPTA, relativo à acção popular. Esta não implica (ou não implica principalmente) um interesse pessoal na invalidação do acto, mas sim um interesse de toda a comunidade ou de um grupo indeterminado de cidadãos (logo, difuso) relativamente a um bem jurídico de fruição difusa (total ou maioritariamente).
No caso é invocado o interesse público da verdade desportiva. Ora este não pode considerar-se integrante do direito fundamental ao desporto (79ºCRP), não sendo portanto um bem constitucionalmente protegido. Efectivamente, o direito ao desporto implica que os particulares possam exigir ao Estado certas incumbências, como a promoção, o estímulo e o apoio da cultura física e do desporto, mas já não a defesa de uma suposta verdade desportiva, conceito aliás indeterminado e de concretização complexa. Como bem nota Jorge Miranda, o direito ao desporto é corolário do direito à protecção da saúde (64º/2 b) CRP) e do direito aos lazeres (59º/1 d) e 70º/1 e) CRP), de onde se infere que a ratio da constitucionalização do primeiro não se relaciona com quaisquer garantias de contestação procedimental ou processual da veracidade ou da justiça da aplicação de concretas sanções no quadro desportivo. A hipótese de consideração do interesse público da verdade desportiva do prisma do futebol como desporto de massas merecedor de protecção enquanto património cultural português (73º/1 CRP) não é inteiramente descartada.
Bibliografia:
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Cadilha, Carlos Alberto Fernandes. Legitimidade Processual. In “Cadernos de Justiça Administrativa”, nº 34, Julho/Agosto, 2002. pp. 9-23.
Gonçalves, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Administrativos. In “Cadernos de Justiça Administrativa”, nº 56, Julho/Agosto, 2006. pp. 50-59.
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Sousa, Miguel Teixeira de. Reflexões sobre a Legitimidade das Partes em Processo Civil. In: “Cadernos de Direito Privado”. Nº1 Janeiro/Março 2003. pp. 3-13.
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