domingo, 9 de maio de 2010

Âmbito de Jurisdição Administrativa – Quoi de neuf (após a reforma 2002/2004)?

Como se sabe, e muito se discutiu nas últimas décadas do século XX, era imprescindível uma reforma ao Contencioso Administrativo (CA). Alguns dos argumentos mais frequentemente invocados por toda a doutrina administrativista consistiam na necessidade de concretização do Estado de Direito na protecção dos particulares que se relacionassem com a Administração Pública (AP), pois não se podia considerar, à luz da lei processual anteriormente em vigor (e por diversas razões), haver uma verdadeira tutela jurisdicional efectiva na litigância contra a AP, o que é exigido constitucionalmente (268º/4 CRP) e nas convenções europeias das quais Portugal é parte (6º CEDH e 4º CDFUE).
Um dos pontos sobre o qual incidiu a dita reforma foi o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos.
Desde a revisão de 1989 (que trouxe um novo texto ao 212º/3 CRP, antigo artigo 214º) se impunha uma alteração da lei processual relativamente ao âmbito material da jurisdição administrativa, visto a CRP ter consagrado um novo critério: relação jurídica administrativa. Como se sabe, esta alteração do critério teve que ver com a evolução das relações entre particulares e administração que deixaram de ser vistas como sendo meramente bilaterais e passaram a ver-se como relações multipolares (ao jeito do prof. VPS) com efeitos em esferas jurídicas de terceiros. Muito basicamente, esta evolução enquadra-se no contexto do Estado Pós-Social, no qual a AP passou a desempenhar diversos e variados tipos de funções (prestadora, reguladora, de segurança, etc.), exigindo-se uma maior protecção e tutela das posições dos particulares face à AP. Ora isto tem que ser contraposto com o facto de não se permitir que os tribunais se substituam à função administrativa. Consequentemente, defendemos que o critério a adoptar, em conjugação com o disposto no 4º ETAF (do qual nos debruçaremos mais abaixo) deve ser o critério consagrado na CRP, 212º/3, interpretando-se literalmente o artigo: relação jurídica administrativa).
Afastam-se portanto critérios que outrora foram propostos (como por exemplo o critério estatutário) que à luz do que a mais moderna doutrina administrativista defende, se consideram já ultrapassados, por não serem adequados nem suficientes às exigências da actuação da AP como a temos nos nossos dias. Não fazia mais sentido continuar a proceder à delimitação do âmbito de jurisdição administrativo de forma residual, pela negativa (como nos explicou Maria João Estorninho – MJE); impunha-se uma delimitação pela positiva, como a que se encontra disposta (ainda que em determinados casos sejam passíveis de críticas) ao artigo 4º ETAF para haver conformidade com o que já se tinha definido anteriormente na CRP – esta desconformidade da nossa ordem jurídica não podia prosseguir. Ultrapassou-se então o sistema do ETAF de 1984 que delimitava a jurisdição administrativa por via da conjugação de uma cláusula geral (antigo 3º ETAF) com uma enumeração exemplificativa de carácter negativo (antigo 4º ETAF).
Especificamente, no que concerne ao âmbito de jurisdição, as grandes novidades que chegaram ao Contencioso Administrativo com a entrada em vigor em 2004 da reforma foram para o âmbito de jurisdição as seguintes:


 A possibilidade de julgar litígios de responsabilidade civil extracontratual do Estado e outras pessoas colectivas públicas (RCEE). A grande novidade neste domínio implementada foi ter-se posto fim à necessidade de distinguir se a responsabilidade advinha da actuação da AP em gestão pública ou em gestão privada. A partir da entrada em vigor da reforma, e nomeadamente no ETAF, todas as situações que impliquem eventual responsabilidade são da jurisdição administrativa.
O problema que surgiu aqui prendia-se com o facto de haver necessidade de uma lei que, ao nível substantivo dispusesse sobre os termos da RCEE. Tal só se concretizou efectivamente com a aprovação da lei 67/2007.
Especificamente, podem ocorrer responsabilidade civil extracontratual:
o 4º/1g’ ETAF – relativamente a pessoas colectivas de direito público, incluindo-se o exercício da função legislativa e jurisdicional;
o 4º/1h’ ETAF – no que respeita a titulares de órgãos, funcionários, etc.;
o 4º/1i’ ETAF – no que concerne a sujeitos privados cuja actuação se subsuma ao regime da RCEE. Como se pode perceber, esta alínea até 2007 não teve alcance prático.
Contudo, o 4º/2 e 3 ETAF excluem alguns casos do âmbito da jurisdição administrativa que poderiam eventualmente ser passíveis de acção de responsabilidade extracontratual:
o Alínea a’ do nº 2 – trata-se aqui de actos praticados no exercício da função política e legislativa, o do ponto de vista do princípio da separação de poderes nunca poderia ser submetido à jurisdição administrativa, pois não se reconduzem a uma situação de apreciação da legalidade;
o Alínea b’ do nº 2 – decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa;
o Alínea a’ do nº 3 – responsabilidade decorrente de erro judiciário cometido por tribunais doutras jurisdições. Não obstante, entendemos que Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida (FA e MAA) têm razão quando destrinçam nesta alínea os casos concretos de erro judiciário (os quais não poderão ser apreciados pelos tribunais administrativos) dos casos em que decorra uma situação de responsabilidade de uma actuação ilegítima dos magistrados, podendo estas sim ser apreciadas em sede de jurisdição administrativa, pois que se trata da actuação de agentes de administração da justiça (por exemplo situações em que haja excessiva demora na pratica de actos em processo). Deste modo, qualquer actuação de um magistrado, à excepção do previsto erro judiciário, podem ser apreciados em juízo por tribunais administrativos, quando se trate de actos que gerem responsabilidade em matéria administrativa.
Todos estes casos de exclusão do âmbito de jurisdição consideram-se justificados à luz do critério por nós defendido, já que respeitam a matérias que ultrapassam o conceito de relação jurídica administrativa.


 Alargamento da jurisdição administrativa no domínio da contratação. Passou a ser possível que os tribunais administrativos apreciem em juízo (4º/1 b’, e’, f’ ETAF):
o Contratos dos quais resultem um acto administrativo inválido;
o Actos pré-contratuais praticados pelo Estado ou outras entidades públicas;
o Contratos cujo procedimento pré-contratual seja de direito público;
o Contratos de objecto passível de acto administrativo;
o Contratos regulados por normas de direito público;
o Contratos dos quais pelo menos uma das partes actue na prossecução de uma actuação administrativa ou que sejam expressamente submetidos a um regime substantivo de direito público. Quanto a este último ponto, a nosso ver, o Prof. Vasco Pereira da Silva (VPS) tem razão quando diz que o legislador se expressou em demasia, visto que não fará sentido um tribunal administrativo apreciar um litígio entre dois particulares a quem simplesmente “apeteceu” contratar com regras de direito público. Ora, a contratação entre particulares deve reger-se pelo Direito Civil e os respectivos conflitos devem ser dirimidos em sede de jurisdição comum. Por isso tem que se ter algum cuidado interpretativo no que respeita à última parte do 4º/1f’ ETAF.
Interessante é verificar que subsiste na doutrina uma divergência no que concerne ao facto de o legislador ter mantido a clássica distinção entre contratos administrativos e contratos de direito privado. Segundo FA e MAA, permanece tal destrinça, tendo o legislador pretendido densificar o conceito na alínea f’ do nº do artigo 4º ETAF; ao passo que MJE e VPS entendem diferentemente, que não subsiste à luz do novo ETAF tal ideia.
Para além disto, importante é dizer que a entrada em vigor do CCP também teve uma grande importância na concretização dos contratos em que a AP seja parte. E não é despicienda a chamada de atenção de VPS quanto ao facto de o contencioso pré-contratual (100º CPTA e ss.) encontrar uma menor amplitude matérias do que o contencioso contratual desde a entrada em vigor do referido código. Impõe-se a nosso ver uma adequação da lei para que estas matérias se harmonizem.


 Os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os casos de fronteira que configurem questões de matéria predominantemente administrativa, mas que não são situações líquidas, podendo surgir dúvidas na relação com outras áreas do direito (veja-se as alíneas c’, e’, f’, g’, l’ do 4º/1 ETAF). Neste caso e como bem suscitam Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, deve referir-se que no que toca a questões ambientais a jurisprudência tem entendido ter sido parcialmente revogado o artigo 45º (que atribui à jurisdição comum a apreciação de litígios em matéria ambiental) da Lei de Bases do Ambiente, no sentido de conferir aos tribunais administrativos a jurisdição em matéria ambiental.


 Desaparecimento da norma que retirava ao âmbito de jurisdição administrativa a apreciação de litígios emergentes da qualificação de bens como sendo do domínio público (antigo 4º/1e’ ETAF).


 Atribuição à jurisdição administrativa da tutela de direitos e bens constitucionalmente protegidos, como decorre da alínea a’ e da alínea l’ do nº 1 do 4º do ETAF. Claramente estas alíneas se reportam a questões distintas e só integram o âmbito de jurisdição administrativa quando em causa estiver a actuação de uma pessoa colectiva pública ou de um privado desde que a sua actividade se reconduza à função administrativa.


 Possibilidade, que tem como escopo defender a legalidade, de haver apreciação de litígios que advenham das relações entre pessoas colectivas públicas ou entre órgãos públicos – 4º/1j’ ETAF.


 Optou-se por não se alargar ao âmbito da jurisdição administrativa aos casos de contra-ordenação. Muito por força do já elevado esforço e sobrecarga que um alargamento do tipo que foi feito imporia aos “novos” tribunais administrativos.


 Há doutrina que critica fortemente a manutenção das alíneas 4º/3 b’, c’ ETAF que atribuem ao STJ o julgamento de actuações materialmente administrativas praticadas pelos órgãos referidos nessas alíneas. Parece-nos contudo que tendo em conta os órgãos e instituições em questão a apreciação dessas matérias pelo STJ possam imprimir um maior afastamento dos mesmos e talvez uma maior imparcialidade no julgamento das questões em causa.


 Decidiu-se ainda pela não inclusão das questões em que, por força do interesse público, se lesasse um direito do particular e se impusesse indemnização por isso (por exemplo, expropriação por utilidade pública). Os principais argumentos da AR eram no sentido dos tribunais administrativos não se encontrarem ainda próximos da população em geral, o que poderia incorrer em situações de denegação de justiça justamente por onerações relativas a deslocação de certas populações. Uma parte da doutrina (Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida) entende que deve prosseguir-se no sentido de, paulatinamente e com uma instalação estável dos tribunais administrativos, integrar as referidas situações no âmbito da jurisdição administrativa. Para já veja-se que o artigo 5º da lei 13/2002 alterou o Código das Expropriações atribuindo à jurisdição dos tribunais administrativos os litígios emergentes da adjudicação de bem expropriado que se deva reverter (74º/4 do mesmo código).


 Novidade no que concerne à execução de sentenças de matéria administrativa, cujos tribunais administrativos passaram a ter competência para solucionar – 4º/1 n’ ETAF.


 Consagrou-se com a implementação desta reforma uma maior margem para os particulares proporem acções administrativas, pois a enumeração do 4º ETAF abarca inúmeras possibilidades de situações que se devem subsumir à jurisdição administrativa (ressalvando obviamente as proibições dos números 2 e 3). E mesmo o que não couber nessa possibilidade acaba por se enquadrar no 1º ETAF; o que confirma o alargamento da tutela dos particulares que se relacionem com a administração e vejam os seus direitos subjectivos (leiam-se no sentido amplo dado pelo Prof. VPS aos mesmos) a serem preteridos ou postos em causa pela actuação da AP.

Com este alargamento de jurisdição não se pode deixar de ter em conta que alguns problemas de ordem técnica e prática surgiram a par. O aumento da litigância por força do alargamento do âmbito da jurisdição administrativa é um dos problemas a enfrentar pelos tribunais administrativos. Exigia-se (e exige-se) que a par da entrada em vigor desta reforma, se procedesse à criação de tribunais administrativos dotados de infra-estruturas e pessoas qualificadas para trabalharem nesta área, dando resposta célere e promovendo uma verdadeira tutela efectiva às pretensões dos particulares (designadamente por via da criação de mais tribunais e mais distribuídos pelo país, o que se tem feito, veja-se por exemplo o DL 325/2003). De salientar que este problema começou, há pouco tempo, a ser contrariado com a implementação no CEJ de acesso directo à área do direito administrativo, sem ter que se passar (como antes) por muitas outras áreas do direito.

Em jeito de conclusão pode afirmar-se que 1) deu-se um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, 2) ocorreu um esmorecimento da dicotomia entre situações de direito administrativo e de direito privado, 3) consagrou-se um sistema no qual há uma cláusula geral (1º ETAF) que define o que pode ser da jurisdição administrativa e uma enumeração positiva (4º/1 ETAF) apenas limitada pelos números 2 e 3 do mesmo 4º ETAF.
Mas muitas questões continuam em debate na doutrina…
Como nos diz MJE, de facto o “novo” ETAF tem que ser considerado em conjunto com alguns princípios constitucionais como o princípio da separação de poderes ou o princípio da tutela jurisdicional plena e efectiva. Só assim se pode ter uma clara percepção das mudanças ocorridas nesta matéria, nomeadamente no que respeita ao facto de haver uma nova noção de relação jurídica administrativa.
É ainda de chamar à colação posição de Carla Amado Gomes segundo a qual o conceito de relação jurídica administrativa é um conceito vazio que merece operações de integração (nomeadamente por via de critérios como o estatutário, o da conexão funcional, entre outros). Não concordando com tal posição, é não obstante interessante, reflectir sobre a perspectiva que esta nos trás. Pois, a nosso ver, o critério da relação jurídica administrativa é um critério “auto-suficiente” que valerá só por si como definidor do âmbito da jurisdição administrativa. O que se faz designadamente no 4º ETAF é conferir alguma ajuda ao interprete em como proceder à concretização desse conceito e desse modo, poder formular um pedido passível de ser admitido como objecto suficientemente concretizado em tribunal. Parece-nos que a referida autora receia a ausência de imparcialidade dos tribunais administrativos para julgar determinadas matérias, o que a nosso ver não faz, à luz do que se passa actualmente no nosso ordenamento, nenhum sentido. A jurisdição administrativa é tão ou mais imparcial e competente para julgar qualquer tipo de litígio (que faça sentido por ela ser julgado, e daí a definição de relação jurídica administrativa como o critério de delimitação), porque já não se encontra como outrora ao serviço da própria AP; já não se confunde administrar com julgar, já se ultrapassou essa crise. Faz sentido haver tribunais administrativos, de modo a que com a formação adequada e especializada em matéria administrativa, bem como com a experiencia adquirida na resolução exclusiva deste tipo de litígios, tenham maior aptidão para julgar casos que se relacionem com a função administrativa. Assim, e como bem explica Vieira de Andrade (VA), o conceito de relação jurídica administrativa pode ser compreendido por via de um sentido subjectivo (haverá relação jurídica administrativa quando em causa esteja a actuação da AP, nomeadamente através de uma pessoa colectiva pública), de um sentido objectivo (casos regulados por Direito Administrativo), e à luz da função administrativa (relações jurídicas abrangidas cujo exercício se traduza no exercício da função administrativa). Mas não vamos ao encontro da posição do autor no que se refere à sua conclusão, segundo a qual se deve adoptar um critério restrito do que se entenda por relação jurídica administrativa, excluindo deste as relações de direito privado de que a AP faça parte. Não conseguimos perceber como chega o autor a esta conclusão atendendo ao que se encontra disposto no 4º ETAF que claramente estabelece uma preferência de que os litígios em que a AP seja parte sejam abrangidos pelo contencioso administrativo. Não parece de todo subsistir na lei a distinção entre actuação de direito público vs. actuação de direito privado, até porque como dissemos acima, fronteiras foram esbatidas com o novo ETAF… Obviamente, casos haverá em que a lei expressamente atribua a competência à jurisdição comum de litígios que envolvam a AP. Mas para lá dessas considerações a título especial pelo nosso legislador, os restantes litígios que se reportem a relações jurídicas administrativas deverão ser julgados em tribunais administrativos.
Uma última questão se põe: para além do que acima foi exposto, Jorge Miranda e Rui Medeiros (na CRP anotada, edição 2007) entendem que o critério de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa segue uma lógica de especialização, no sentido em que devem ser tribunais especialmente “apetrechados” (com maior grau de especialização nas relações jurídicas administrativas com os particulares) para o efeito que devem ter julgar estes litígios. Deste modo, e como concretizam os autores estamos perante uma reserva absoluta dos tribunais administrativos para a apreciação de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. É nesta sequência que se justifica a atribuição à jurisdição administrativa da competência para julgar casos de fronteira. Parece-nos porém não ser admissível o entendimento segundo o qual haja uma reserva material absoluta de jurisdição (que exija que apenas os tribunais administrativos possam exclusivamente julgar questões de natureza administrativa), já que 1) o actual ETAF estabelece que os tribunais administrativos são competentes para apreciar litígios que possam ter natureza de direito privado, e 2) pode haver (como já referimos) legislação especial que disponha que certas actuações que se reconduzam ao exercício da função administrativa sejam julgadas em jurisdição comum.


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