terça-feira, 25 de maio de 2010

Recurso hierárquico necessário...

Antes de proceder-mos, in concreto, á analise da conveniência do recurso hierárquico necessário, impõe-se antes de mais, um breve enquadramento histórico da questão.Ora, anteriormente à reforma do contencioso administrativo, fazia-se a distinção entre recursos hierárquicos necessários e facultativos.
Como refere o Prof.Vasco. P.Silva, esta discussão apresenta-se como um resquício dos “traumas de infância” infligidos ao contencioso administrativo pelo sistema de administrador-juíz.A executoriedade e definitividade (horizontal e vertical) do acto eram necessárias para que este fosse impugnável, sendo que hoje só se exige a sua eficácia externa.Nesta senda, na medida em que o acto fosse definitivo e executório, o recurso hierárquico seria facultativo. Não o sendo, o particular via-se constituído na obrigação de esgotar todas as garantias administrativas ,findas quais poderia, e só ai, impugnar contenciosamente o acto( donde a qualificação do recurso hierárquico como “necessário”, necessário para efeitos de impugnação contenciosa do acto do subalterno).Seguindo Marcello Caetano: “se o acto não for praticado por agente de quem possa recorrer-se para os tribunais, o recurso hierárquico visa alcançar a decisão final de outra autoridade de cujos actos (...) seja permitido por lei recorrer contenciosamente (...) é necessário para se poder transformar o acto do subalterno noutro contenciosamente recorrível”; “se o acto a impugnar é desde logo definitivo e executório (...) o recurso hierárquico que dele porventura seja interposto é um simples tentativa de resolução do caso fora dos tribunais (...) trata-se de um recurso hierárquico facultativo”.Ora, a quaestio subjacente a este comentário surgiu ,grosso modo, pelo necessidade de articular a aplicação de dois preceitos, prima facie, incompatíveis.A saber:nº 5 do art. 59º CPTA e 167º nº 1. Isto, porque se anteriormente se exigia a definitividade e executoriedade do acto para efeitos da sua impugnação, agora apenas se exige a sua eficácia externa (art. 58/1 CPTA).Este problema, coloca-se em sede da definitividade do acto, a qual é susceptível de ser “repartida” em: horizontal, ou seja, o acto põe termo ao procedimento (com a introdução da primeira parte do art. 51º nº 1, já não há argumentação possível que sustenha este requisito); e vertical, que pressupõe a inexistência de um órgão para o qual se possa hierarquicamente recorrer.Como parece evidente, o recurso hierárquico necessário respeita à dimensão vertical da definitividade, discutindo-se então se os nº 4 e 5 do art. 59º representam o marco final na definitividade vertical ou se em alguns casos ela representa ainda um requisito para a eventual impugnabilidade do acto administrativo.

Posições Doutrinárias:

Antes da reforma do contencioso administrativo, já Vasco Pereira da Silva advogava a favor inconstitucionalidade deste instituto.
Para este autor, a expurgação dos critérios da definitividade e executoriedade do texto Constitucional (art. 268º nº 4), implicou a perda da ratio subjacente à previsão pela lei ordinária de situações de esgotamento de garantias administrativas para efeitos de impugnação de um acto administrativo.Esta previsão, constitui um resquício do sistema de administrador-juíz, não muito longe da regra de exigência de decisão prévia, prevista no sistema Francês, a qual estabelece uma espécie de pré-contencioso ( isto porque e na medida em para se accionar a jurisdição administrativa é necessário interpor previamente um recurso da decisão).Assim, à semelhança do que sucede no recurso hierárquico necessário, é conferido à Administração Pública o direito de se pronunciar uma última vez sobre o conflito existente entre esta e o particular.Ora, esta relação(passível de ser apelidada de promíscua) entre administração e justiça, por força do obstáculo artificial criado ao particular, acaba por redundar na preclusão do direito de acesso aos tribunais. O acto já reunia todas as condições para a sua impugnação, pelo que o que a lei vem estabelecer não acrescenta argumentos que levem a uma melhor decisão por parte do Tribunal, tratando-se portanto de diligências inúteis, contrárias na substancia, ao espírito da lei.( nomeadamente o art. 8º nº 2 CPTA).Na afirmação da inconstitucionalidade do instituto, Vasco Pereira da Silva, apoia-se basilarmente num conjunto de argumentos que cumpre precisar.
-Em primeiro lugar, afirma o autor, a existência de uma violação do princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º nº 4 CRP),porquanto constitui uma negação do direito fundamental de recurso contencioso, a sua recusa quando não tenha havido impugnação administrativa prévia.
-Por outro lado, a exigência da utilização da garantia administrativa prévia, sob pena de ser precludido o direito de acesso ao tribunal, constitui uma violação do princípio constitucional da separação entre administração e justiça,tal como consagrado nos art. 114º, 205º e segs, 266º e segs CRP.
-O princípio da desconcentração administrativa (art. 267º nº 2 CRP), implica “a imediata recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, sem prejuízo da lógica do modelo hierárquico da organização administrativa, pois o superior continua a dispor de competência revogatória (art. 142º do CPA)”.

-Por ultimo, o princípio da efectividade da tutela (art. 268º nº 4 CRP). Isto, porque o reduzido prazo de 30 dias (art. 168º nº 2) pode levar a que na prática, seja inviável o exercício do direito e consequentemente a uma violação do seu conteúdo essencial.Destarte, para alem destes argumentos relativos á constitucionalidade, a verdade é que existem outros argumentos passíveis de invocação contra a manutenção do recurso hierárquico necessário.

-Dada a identidade material entre os actos do subalterno e do superior hierárquico,a actuação do subalterno preenche um tipo legal perfeito que produz efeitos imediatos.Com efeito, a verdade é que se o particular nada decidir fazer, o acto produzirá os seus efeitos normalmente, sem qualquer intervenção do superior hierárquico. “Ambos são decisões provenientes de autoridades administrativas, no domínio do direito público, que produzem efeitos jurídicos de carácter individual e concreto, sendo os dois igualmente susceptíveis de lesar os direitos dos particulares”.-Quanto ao argumento de Aroso de Almeida(vide infra)de que as leis avulsas seriam leis especiais em relação à regra geral do CPTA, escalerece Vasco Pereira da Silva que a ser a regra geral( o recurso hierárquico), nos moldes previstos anteriormente à reforma, as leis avulsas seriam meramente confirmativas e portanto com a revogação da regra geral, não é necessário referir que todas as outras repetições dessa regra são também revogadas. Assim, a admitir recurso hierárquico, só para situações a criar no futuro.Salienta ainda o autor que o problema está mal colocado. Para além da caducidade destas leis, por inconstitucionalidade, elas caducam também por falta de objecto.

Assim se, “a única razão de ser da exigência de recurso hierárquico necessário era a de permitir o acesso ao juíz, e se, agora, o Código de Processo estabelece que tal garantia prévia não é mais um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, então isso só pode significar que a exigência do recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas” (Silva,Pereira Vasco , De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo ).
Atenta também o autor na prolixidade de se afirmar que deixando de ser um pressuposto para se impugnar o acto, o recurso hierárquico possa continuar a ser exigido, criando uma situação tal de incoerência em que haveria um recurso “hierárquico desnecessário necessário”.Ainda assim, esta figura é provida de utilidade, isto porque tem uma vantagem para o particular que o o recurso contencioso não tem, a suspensão imediata dos efeitos do acto. Para além disso, a contagem do prazo para recurso contencioso é suspensa, daí que não seja prejudicado o acesso aos tribunais.Para uma maior utilidade e melhor funcionamento das garantias graciosas, propõe que a suspensão dos efeitos do acto seja alargada a todas as outras garantias e, que sejam tomadas medidas para garantir a estas figuras maior eficiência e imparcialidade, nomeadamente que sejam criados órgãos à semelhança dos tribunals britânicos. Contudo, nunca o direito de acesso directo aos tribunais poderia ser posto em causa por estas medidas.

A favor da Constitucionalidade e manutenção do recurso hierárquico necessário parece ser a posição do Prof. Mário Aroso de Almeida, para quem a introdução dos nº 4 e 5 do Art. 59º CPA, não vem acabar com a figura do recurso hierárquico, ainda que seja inquestionável que o campo de acção desta figura sofreu um severo golpe e que, em termos gerais, o Código parece manifestar preferência pela não imposição de barreiras administrativas ao recurso contencioso.Para o ilustre professor, as diversas leis avulsas que estabelecem recursos hierárquicos necessários mantêm-se, pelo que nesses casos concretos é necessário recorrer administrativamente para efeitos de posterior impugnação contenciosa do acto. Acrescenta o mesmo, que pelo número de leis que estabelecem este instituto, a falta de menção expressa pelo CPTA de que com ele pretendia terminar , significa que estas leis passam a ser especiais em relação à lei geral. Será portanto um caso em que a norma geral é afastada, e a isso não obsta o facto de as leis especiais serem anteriores, pois segundo o art. 3º do Código Civil, na falta de “intenção inequívoca do legislador” isso será permitido.Neste sentido, por não fazer mais que reconhecer a existência desta figura, parece apontar o art.167º .O que ele faz é reconhecer que só deve haver lugar a recurso hierárquico necessário, quando este resulte de uma opção “consciente e deliberada” do legislador.Outra consequência da reforma, é a revogação tácita do art. 164º do CPA, pelo art. 59º nº 4, “que só atribui efeito suspensivo à reclamação quando o acto a que ela se reporta esteja sujeito a impugnação administrativa necessária”.Em consequência da extinção da figura do indeferimento tácito, ter-se-á de ler o nº 3 do art. 175º a uma luz diferente, devedo ser o mesmo ser interpretado o no sentido de que “a falta de decisão do superior confere ao interessado a faculdade de lançar mão do meio de tutela adequado à protecção dos seus interesses”.No que toca á questão da constitucionalidade , entende o autor que com a reforma constitucional de 1989 e consequente queda do requisito da definitividade do acto administrativo expresso na lei(parte da doutrina entende que este passou a ser proibido, ficando deste modo vedada a possibilidade de se estabelecerem recursos hierárquicos necessários),apesar de deixar de ser um requisito geral, nada obsta no texto constitucional a que por lei se possam estabelecer tais meios de impugnação administrativa. Acrescenta, contudo, que como qualquer outro pressuposto processual, têm de respeitar o crivo constitucional e subjacentes critérios de constitucionalidade. Assim, terá de de se aferir,in concreto, “se essa imposição envolve um condicionamento excessivo, desproporcionado e, por isso ilegítimo do direito fundamental de acesso à justiça administrativa.”Por outro lado, cumpre esclarecer o porque da não violação do postulado geral de desconcentração da administração imposto pelo nº2 do art. 267º.
Ora, sendo o recurso hierárquico necessário objecto de uma ponderação específica do legislador sempre que é introduzido, será congruente com o disposto na C.R.P., visto que esta não exige uma desconcentração total(neste sentido basta atentar o texto constitucional: “sem prejuízo da eficácia e unidade da Administração e dos poderes de direcção, tutela e superintendência dos órgãos competentes.”Assim, haverá lugar a esta figura, sempre que se mostre adequado e conveniente, pois é essa a intenção da Lei Fundamental.

Por outro lado, Vieira de Andrade a titulo de comentário ao acórdão 499/96 do TC salienta, que o recurso sub judicio não constitui uma qualquer obstrução ao acesso ao recurso contencioso.Com efeito, o art. 268º nº 4 “visa conferir aos cidadãos o direito ao recurso contencioso, contra qualquer acto de autoridade lesivo dos seus direitos” sendo o recurso hierárquico necessário comparável a qualquer outro pressuposto processual que se possa impor .Nem será sequer uma obstrução “em espécie, porque o acto do subalterno acaba por ser ele próprio, impugnado, na medida em que fica incorporado no acto do superior”.Salienta ainda o autor que ainda que contrário ao princípio da desconcentração, o recurso hierárquico não o ofende “pois só existe onde a lei não tenha optado por competências exclusivas dos subalternos ou não abra a possibilidade de delegação (ou esta não tenha sido utilizada)”.Reconhecendo, que a preclusão do recurso contencioso é uma clara desvantagem, afirma que não sendo necessário patrocínio judiciário para a apresentar, nem qualquer complexa argumentação jurídica, em suma “quase basta mostrar discordância relativamente ao acto praticado”, o prazo geral estabelecido é suficiente. Assim, só no caso previsto no art. 170 nº 1, será portanto, pertinente levantar a questão da constitucionalidade. Contudo, segundo o autor, “se a não suspensão de efeitos decorrer da lei, não se podem ignorar os motivos que levaram o legislador a estabelecê-la; caso decorra da vontade do autor do acto, poder-se-á sempre recorrer aos tribunais para que se pronuncie sobre a eficácia desta opção”.Embora advertindo sobre o dever dos tribunais de garantir “uma tutela judicial efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos”, conclui, de resto tal como Aroso Almeida, pela constitucionalidade do instituto e admissibilidade do recurso imediato (e o pedido de suspensão judicial de eficácia) caso uma solução contrária prejudique em termos desrazoáveis o direito ao recurso contencioso.

Perante esta conjuntura argumentativa, cumpre agora concluir.

Abstraindo da questão da constitucionalidade, parece possível apontar algumas notas positivas do instituto, assim:
-suspende a eficácia do acto recorrido, que é porventura o maior dos benefícios que o particular pode ter num sistema de administração executiva;
-dispensa o patrocínio por advogado, é informal, é fácil de interpor, é barato e é rápido;
-obriga à decisão de um órgão administrativo mais qualificado;
-permite o controlo do mérito.

Com efeito, com as devidas garantias de independência do órgão que analisa o recurso, este pode ser a chave para obviar a um processo mais moroso e custoso em tribunal, com a vantagem de que neste caso a decisão também se poderia fundar no mérito do acto. Contudo, a verdade é que em face do novo Contencioso Administrativo, dificilmente se poderá afirmar a admissibilidade do recurso hierárquico necessário.Com efeito, parece possível inferir(talvez com excessiva facilidade) da redacção do art. 59º/5 CPTA uma intenção expressa e inequívoca do legislador no sentido da eliminação de qualquer condicionamento á impugnação contenciosa. O preceito ao determinar que nenhuma impugnação administrativa condicionará a interposição de recurso contencioso, é claro nesse sentido. Assim, em tudo o que se revelar incompatível , os art.s 167º; 168º e 170º CPA, não podem senão ter-se por revogados.
Contudo, não me parece, prima facie, procedente, a argumentação segundo a qual as normas antigas que previam o instituto fossem meramente confirmativas.Com efeito, como foi supramencionado, não faria qualquer sentido que sendo o recurso hierárquico necessário o regime geral, tais normas não sendo especiais fizessem questão de “reafirmar” a sua aplicação(do regime do recurso necessário).Sendo regra geral não teriam de o fazer, pois já seria , per se ,aplicável. Ora esta reafirmação só faz sentido, se a justificarmos á luz das eventuais particularidades das situações que tais normas visam regular. Porque especiais, em relação ao regime geral, não podem por isso ter-se como revogadas. Assim, no meu entender, tais normas continuam em vigor, e o recurso continua em relação a elas, a ser necessário.
Contudo, em ultima analise, tudo dependerá de indagar se as razoes justificativas da reafirmação( e da necessidade) do recurso hierárquico necessário por tais normas ainda persistem , se assim não for, aí sim terão caducado por falta de objecto.

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