segunda-feira, 17 de maio de 2010

Breves considerações sobre os poderes de pronúncia dos tribunais administrativos no âmbito da acção especial de condenação à prática do acto devido


Ultrapassado o entendimento clássico da separação de poderes que limitava o controlo jurisdicional da Administração Pública (AP) à anulação dos actos administrativos, impedindo que aquela fosse condenada na prática destes últimos, a revisão constitucional de 1977 abriu caminho (268º/4 CRP) para que a posterior Reforma do contencioso administrativo viesse a consagrar um mecanismo processual condenatório que passava a permitir a condenação da AP nos casos de omissão e de emissão de acto administrativo de conteúdo negativo ilegais.

Tal consagração não implicou todavia uma perversão da separação de poderes, uma vez que o tribunal não ganhou poderes ilimitados de pronúncia no âmbito da acção de condenação à prática do acto devido, como se pode verificar pela redacção do 71º CPTA. Efectivamente, o que resulta deste preceito é um nivelamento dos poderes de pronúncia do tribunal conforme o grau de discricionariedade de actuação conferida à AP. Significa isto que, embora o tribunal esteja constituído no dever de se pronunciar sobre “o bem fundado da pretensão do interessado” (71º/1 in fine CPTA), por força de o objecto da AA especial de condenação ser a posição subjectiva do particular (66º/2 CPTA), não se pode imiscuir no espaço de discricionariedade exclusivamente pertencente à AP. Assim, julgar a legalidade da actuação da AP é ainda julgar, mas julgar do mérito da mesma será já administrar (3º/1 CPTA). Tal não significa, não obstante, que os tribunais apenas possam condenar a AP quando o acto seja de conteúdo inteiramente vinculado e que se devam abster de o fazer quando seja elevada a margem de discricionariedade da decisão administrativa. Vejamos:

Para que os tribunais possam condenar a AP a praticar um acto administrativo (no caso de o acto ter sido puramente omitido, de ter havido um acto de indeferimento ou de ter sido emitido um acto híbrido, parcialmente desfavorável), a emissão do acto em questão tem de ser devida, ou seja, quanto à oportunidade de actuação a margem de discricionariedade tem de ser zero, por tal resultar directamente da lei ou da apreciação do caso concreto. Diferente é dizer que o conteúdo do acto é inteiramente pré-determinado pela lei, ou que no caso concreto há apenas uma solução legalmente admissível ou ainda que o conteúdo do acto está totalmente dependente do exclusivo entendimento da AP. Portanto, uma coisa é a oportunidade de actuação da AP, que tem sempre de ser vinculada para que o tribunal possa condenar na prática do acto devido, e outra coisa é o conteúdo do acto da AP, que não tem necessariamente que ser vinculado para que possa ser ordenado pelo tribunal. Verificado o dever de emissão do acto, a sentença condenatória poderá ser, de acordo com a discricionariedade administrativa na determinação do conteúdo do acto:

a) Uma sentença condenatória simples, em que a AP é condenada na emissão de um acto administrativo, sem qualquer explicitação relativa ao seu conteúdo. São os casos de discricionariedade máxima da actuação administrativa, que resultam principalmente de 2 situações: 1) a omissão ou a inércia da AP são tais que esta não fornece ao tribunal qualquer substrato para que este último possa balizar parâmetros da actuação futura da Administração; 2) a AP recusa liminarmente a apreciação da pretensão, com fundamento na existência de questões prévias (uma vez que a AP não se pronunciou ainda sobre o mérito da pretensão, o tribunal pode apenas verificar a inexistência das questões prévias e condenar a AP a emitir um qualquer acto).

b) Uma sentença indicativa, nas situações em que a actuação administrativa possua alguma margem de discricionariedade, mas seja ainda possível identificar certos aspectos vinculados da sua conduta (como os seus pressupostos fácticos, as suas finalidades e a obediência a princípios como a proporcionalidade, a igualdade ou a boa-fé). Aqui, o tribunal não pode especificar o conteúdo exacto do acto a praticar mas pode definir que modalidades de actuação a AP não pode utilizar e os quais os parâmetros vinculados do acto a respeitar na sua conformação. Este tipo de sentenças de condenação genérica é expressamente admitida pelo 71º/2 CPTA. Vasco Pereira da Silva (O Contencioso Administrativo (…), pp. 394) chama a atenção para a “natureza mista” deste tipo de sentenças, por um lado condenatórias (quanto aos aspectos vinculados do acto) e por outro declarativas (enquanto orientadoras da conduta da AP, relativamente aos elementos de discricionariedade).

c) Uma sentença condenatória plena (ou sentença de condenação à prática do acto devido), nos casos em que a actuação administrativa seja totalmente vinculada legalmente ou a discricionariedade do acto administrativo tenha sido, no caso concreto, reduzida a zero (na última das hipóteses, sucede que o acto administrativo era em abstracto discricionário, mas que tal discricionariedade se esgotou através escolha de uma forma de actuação pela AP ou por o caso concreto apenas admitir um tipo de comportamento legal por parte da AP). A admissiblidade deste tipo de sentenças retira-se de uma interpretação a contrario do 71º/2, conjugado com o 71º/1 in fine, ambos do CPTA.

No âmbito da AA especial de condenação à prática do acto devido não são possíveis as chamadas sentenças substitutivas (como o próprio nome indica, a sentença substitui-se ao acto devido na produção de efeitos), embora estas sejam admitidas noutros processos administrativos (por exemplo no processo urgente de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias – 109º/3 CPTA).

Uma última palavra nesta matéria, relativa à apreciação de conceitos indeterminados pelo tribunal: como bem nota Paula Barbosa (A Acção de Condenação (…), pp. 96), os conceitos indeterminados e a discricionariedade são coisas distintas. Enquanto os primeiros comportam uma única solução válida, encontrada com recurso a critérios extrajurídicos, a segunda implica que uma mesma situação possa comportar várias soluções, todas legalmente admissíveis. Ainda que a indeterminação conceitual não seja uma questão de discricionariedade, há que admitir (o que a Autora não faz) que o preenchimento de certos conceitos indeterminados implica valorações próprias da actividade administrativa (como será o exemplo da medida que melhor prossegue o interesse público), pelo que não deve ser sindicável em tribunal. Quando tal não suceder, por os conceitos em questão se reportarem a valorações não exclusiva ou eminentemente administrativas (boa-fé, bons costumes, ordem pública…), aqueles podem ser densificados pelo tribunal, sem que isso consubstancie exercício da função administrativa por parte do órgão jurisdicional.

Bibliografia:

Almeida, Mário Aroso de. O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2005.

____________________ O Objecto do Processo no Novo Contencioso Administrativo. In “Cadernos de Justiça Administrativa”, nº 36, Novembro/Dezembro, 2002. pp. 3-16.

Andrade, Vieira de. A Justiça Administrativa (Lições). 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2009.

Barbosa, Paula. A Acção de Condenação no Acto Administrativo Legalmente Devido. Lisboa: AAFDL, 2007.

Silva, Vasco Pereira da. O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2009.

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