domingo, 16 de maio de 2010

Da (in)utilidade da apreciação incidental de actos administrativos inimpugnáveis em sede de acção administrativa comum


A compreensão do inovador regime contido no art.38 do CPTA passa necessariamente pelo conhecimento do entendimento maioritário que vigorava anteriormente à Reforma de 2004 quanto à apreciação de actos administrativos que se tornam inimpugnáveis pelo decurso do respectivo prazo de impugnação. Impõe-se antes de mais duas notas de compreensão prévia: a primeira é a de que o regime do art. 38/1 se parece apenas aplicar a actos administrativos ab initio impugnáveis, porque lesivos, mas que por decurso do prazo de impugnação contencioso se tornaram inimpugnáveis, e não a outros actos que a Constituição ou a lei vedem a respectiva impugnação contenciosa; a segunda é a de que o artº 38/1 embora refira o “domínio da responsabilidade civil da Administração” deve entender-se como referente a todo e qualquer pedido no âmbito da acção administrativa comum (e a tal conclusão nos guia o uso pelo legislador do vocábulo “nomeadamente”); Será no entanto sobre a implicação do art 38/1 no domínio da responsabilidade civil da Administração que esta análise incidirá em virtude de ser aquele o domínio onde o problema de apreciação incidental de actos administrativos já não impugnáveis mais se coloca.
Anteriormente ao CPTA vigorava maioritariamente o entendimento que configurava a prévia impugnação contenciosa do acto danoso como um pressuposto da acção de responsabilidade civil. E tal entendimento tinha, segundo interpretação dessa doutrina, apoio no então vigente DL 48 051 de 1967, cujo art. 7º dispunha: “o dever de indemnização por parte do Estado (…) não depende do exercício pelos lesados do seu direito de recorrer dos actos causadores de danos; mas o direito destes à reparação só subsistirá na medida em que tal dano se não possa imputar à falta de interposição de recurso ou a negligente conduta processual da sua parte no recurso contencioso”. Atentava Marcello Caetano, a este propósito, na existência de vários prejuízos que ficariam reparados pelo simples efeito da anulação do acto danoso, pelo que estes não eram admissíveis como objecto de acção de responsabilidade civil precisamente porque são os danos cuja subsistência é imputável à falta de interposição de recurso contencioso, a que aludia o art 7º parte final do DL 48 051. Segundo esta interpretação, seriam apenas legitimamente abragidos pelo pedido de responsabilidade civil aqueles prejuízos insusceptíveis de serem reparados por efeito da anulação do acto que os causou. Tudo se resumia, portanto, a reconhecer que o decurso do prazo de impugnação sem que o particular exercesse o seu direito de anulação tinha afinal eficácia material de “caso decido”, no sentido em que os vícios que enfermavam o acto anulável seriam sanados pelo decurso de tal prazo.
O cenário traçado viria, ainda antes da vigência do CPTA, a ser contestado por alguma doutrina como Vieira de Andrade, Rui Medeiros ou Vasco Pereira da Silva que defendia a eficácia meramente processual da inimpugnabilidade decorrente do decurso do respectivo prazo. Este último Autor pugnava mesmo pela inconstitucionalidade da interpretação tradicional do art 7º Lei 48 051 que elevava à categoria de pressuposto processual acção de responsabilidade civil a prévia impugnação contenciosa do acto danoso, alegando restrição desproporcional e ilegítima do direito fundamental à indemnização dos particulares. O inovatório art. 38 CPTA, ao estatuir a faculdade de apreciação incidental de actos administrativos já não impugnáveis em sede de acção administrativa comum, veio aparentemente pôr termo à discussão. A agora expressamente consagrada autonomização do direito à indemnização face ao ónus de prévia impugnação contenciosa veio ainda a ser complementada com o novo regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, cujo art. 6º remete para uma questão de culpa do lesado a não impugnação do acto danoso, na medida em que o dano possa ser imputado à negligência processual do particular. Assim, direito à indemnização não depende da prévia e tempestiva impugnação contenciosa do acto.
O problema que se coloca actualmente nesta matéria é o de como conciliar a norma do art. 38/2 CPTA com a aparente consagração da referida autonomização entre anulação e reparação consagrada no art. 38/1 CPTA. Estatui o art 38/2 CPTA que não poderá obter o particular pela acção administrativa comum onde seja apreciado incidentalmente o acto inimpugnável o efeito que resultaria da anulação do mesmo.
Se bem que teoricamente esta parece ser a decisão mais acertada, em termos práticos a mesma levanta bastantes dificuldades. Quais são afinal os efeitos que podem ser obtidos em acção de responsabilidade civil que não decorriam já da anulação do acto naquela apreciado; o mesmo é dizer, quais são os danos cuja reparação não possa ser obtida em acção de responsabilidade civil porque essa mesma reparação decorreria já da anulação do acto danoso que todavia não chegou a acontecer? A este propósito, fala, no entanto sem exemplificar, Vieira de Andrade em efeitos atípicos, complementares, futuros ou colaterais da anulação do acto, os quais já podiam ser obtidos no âmbito de um pedido de indemnização. Fica, pois, por determinar o que serão esses efeitos atípicos.
O art. 38/2 CPTA parece sim vir a esvaziar de conteúdo útil o art 38/1 CPTA. Ideia que se percebe mais nitidamente se atentarmos que, domínio da acção de responsabilidade civil, o art. 38/2 CPTA parece fazer ressurgir a antiga doutrina que excluía do objecto do pedido de indemnização todos os danos susceptíveis de reparação por efeito da anulação ou execução da sentença de anulação do acto. Um dos efeitos directos da anulação (38/2) é a reparação de determinados danos para o particular, o qual não se valendo da prévia anulação do acto danoso não poderá mais obter a reparação desses danos. Continua, portanto, a verificar-se uma restrição significativa do direito do particular à reparação que torna como meramente aparente a autonomização entre anulação e reparação.
Martim Teixeira
Subturma 8

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